O Mal não Existe, de Ryûsuke Hamaguchi

PARA ALÉM DO BEM E DO MAL

Quando esteve em cartaz, há dois anos, eu lembro de ter assistido a Drive my Car, do japonês Ryûsuke Hamaguchi, duas vezes (a despeito das suas quase três horas de duração). Apesar disso – e talvez por ser uma história bastante complexa, envolvendo amor, traição, culpa, teatro e o labirinto da experiência humana – eu guardava na memória, fundamentalmente, a cena em que a recém assignada motorista leva o visitante, dono do carro, para conhecer a magnífica usina de tratamento de lixo de Hiroshima, a cidade onde ele iria passar uma temporada à frente da montagem (em várias e simultâneas línguas) da peça de Tchecov, Tio Vânia.

Nessa ocasião, ambos se sentam numa espécie de arquibancada em frente ao que parece ser um estuário e, fumando, falam sobre si mesmos, dando início a uma ligação sentimental que iria se consolidar gradativamente ao longo do filme. São protagonistas de um encontro bastante inusitado: ele, um renomado diretor de teatro sediado em Tokyo, viúvo e sabedor das traições de sua finada esposa; ela, uma jovem saída de um vilarejo distante onde havia sobrevivido a um deslizamento de terra e a uma mãe esquizofrênica (morta nesse mesmo deslizamento). Hecatombes, portanto, por toda parte – a partir da própria cidade em que a cena ocorre –, mas também a promessa de que tudo pode ser reconstruído a um ponto tal em que o lixo vira luxo (coisas do Japão?).

E eis que agora chega aos cinemas o novo filme desse diretor, O Mal não Existe, bem mais conciso, porém não menos contundente. E para quem esperava uma nova trama tão opulenta quanto a anterior (com seus diversos ambientes e requintes, inclusive o de acerto de contas com os mortos), um primeiro espanto já logo de cara: a quase totalidade do filme se passa numa pequena comunidade rural, cercada por florestas onde vivem animais selvagens e brotam plantas nativas e uma água puríssima das suas nascentes. As falas são poucas e breves.

Após um tempo nos inteiramos que os seus habitantes são os filhos de uma geração de colonos que lá se instalaram (ou foram instalados) no pós-Segunda Guerra Mundial. É gente que aprendeu a dar valor ao que a dita “natureza” oferece: instalar-se nela requer saberes que, sim, podem até dialogar com o “progresso”, mas desde que esse também esteja disposto a ouvir e aprender. Não é o que acontece.

É possível, numa primeira abordagem interpretativa – e apesar das grandes diferenças de contexto e de complexidade da trama –, conectar ambos os filmes a partir do tema, ecológico, do que fazemos com os nossos rejeitos (ou dejetos). Hiroshima, como vimos, investiu pesadamente no tratamento do seu lixo. No caso dessa comunidade, a principal preocupação de todos os moradores locais diante da proposta que lhes é apresentada, de uma “nova” forma de explorar as riquezas da região, recai sobre o local onde irá ficar a fossa céptica desse mirabolante empreendimento. Sendo aquele um local mais elevado em relação aos demais vilarejos da região, se essa for mal posicionada, correrá o risco de prejudicar a essas outras localidades.

Mas essa não é senão a primeira camada daquilo que liga um filme a outro. Haverá ainda um segundo e bem maior espanto que não convém adiantar (estragando, assim, a virtual ida de quem for ver esse poderoso filme). Cabe aqui somente chamar a atenção para o fato de que temos nele, assim como no anterior, um protagonista que é viúvo e que, além disso, é alguém que se sobressai num certo conhecimento, que acaba por dizer respeito aos seres humanos: se antes era o teatro e a sua linguagem, aqui temos um profundo conhecedor da região habitada. São dois personagens que não são alheios às agruras da vida – em especial às relativas à perda de pessoas queridas –, mas que cuidam para que isso não os afunde: cultivam o novo, cultivam a vida e, principalmente, acima de tudo (acima de toda moral), agem quando essa mesma vida o requer – no caso de Drive my Car, isso inclui se permitir ser conduzido em seu próprio carro.

O que, então, vem a ser o mal? O mal talvez esteja na nossa eterna queixa – como se diz por aí, foi para isso que inventamos a linguagem. Porém, quando se consegue enxergar o real funcionamento das coisas que dizem respeito à vida (e que não excluem a morte), quando a sintonia ocorre nesse exato ponto em que a linguagem em si é desmascarada, o que acontece é que o mal deixa de existir. É então que o amor tem uma chance.

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Sobre Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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