Dias Perfeitos, de Wim Wenders

MY WAY

Em seu fantástico livro “Raízes do Romantismo” (Fósforo, 2022), que reúne uma série de conferências proferidas em 1965, o grande teórico Isaiah Berlin se pergunta se o movimento romântico que surgiu na Europa no século XVIII teria tido alguma influência na Revolução Francesa de 1789. A princípio, diz ele, não, já que essa ocorreu, conforme o senso comum, sob o signo do Iluminismo e sua crença absoluta no poder da razão. Nada teria a ver com a fé na singularidade, no gênio e na vontade autorrealizadora que situavam esse também jovem movimento no canto oposto do ringue. Um pressuposto seu, de que o mundo não tem uma ordem predeterminada, de que ele é, na verdade, caótico e informe, bate de frente com a busca iluminista de uma harmonia universal. O melhor resumo disso está quando ele traz Schopenhauer, para quem o homem é

“um ser atirado em uma frágil casca de árvore no vasto oceano da vontade, que não tem nenhum propósito, nem fim, nem direção, e ao qual o homem só pode resistir por sua conta e risco, com o qual o homem só pode chegar a um acordo se conseguir se livrar desse desejo desnecessário de ordenar, de se organizar, de criar um lar aconchegante para si nesse elemento indomável e imprevisível.”

Como corolário dessa percepção está a noção de que o conflito é algo inevitável, de que deve-se assumi-lo como parte integrante das relações humanas: há uma incompatibilidade no que diz respeito a valores; e isso não é algo a se lamentar. O que importa, no fundo, não é quem tem razão, mas a forma como cada um irá defender aquilo em que acredita. Um respeito poderá (e haverá) de nascer disso. Ao contrário da perspectiva universalista que prega a não coexistência de visões de mundo – e, portanto, em nome de uma pretensa harmonia a ser alcançada, acaba, paradoxalmente, gerando  e legitimando guerras – o romantismo teria chegado com a ideia de que está tudo bem que o outro pense diferente: da assunção de uma natureza conflitiva inerente surge a possibilidade de uma convivência pacífica, mediada pelo reconhecimento do outro enquanto vontade autorrealizadora.

O resgate dessas reflexões me veio a partir de Dias Perfeitos, o mais recente filme de Wim Wenders, ainda em cartaz nos cinemas. O filme trata de um senhor de meio idade, Hirayama, residente e (supostamente) natural de Tóquio, que ganha o seu sustento lavando banheiros públicos espalhados por essa metrópole. Todo dia ele sai de sua pequena habitação, onde vive só, e realiza seu trabalho em parceria com um(a) ajudante, não sem ter os seus momentos de contemplação e de distração. É alguém de bem com a vida, que não necessita de muita coisa – nem mesmo de muita conversa com os demais à sua volta – tendo em vista os livros e as fitas cassete dos quais se cerca e usufrui. 

O filme acompanha a sua rotina e me lembrou – e levou a rever – o Simplesmente Feliz (2008), do diretor inglês Mike Leigh, com a divina Sally Hawkins, que retrata uma professora do ensino infantil na Londres atual. São filmes muito próximos, a despeito de esse outro personagem ser extremamente comunicativa, talvez até em excesso: o seu instrutor de autoescola, travado e maníaco, por exemplo, não suporta o seu estilo sempre “pra cima”, único (apesar de acabar se apaixonando por ela). As aparências, contudo, enganam. Cabe reparar que a vivaz Poppy é alguém que conhece bastante o mundo, tendo passado e dado aulas em países do Oriente, por exemplo. É também alguém que não se priva de estar com os miseráveis da própria cidade onde vive, como na cena em que tenta dialogar com um morador de rua, sucumbido à loucura.

A história de Hirayama vai aos poucos sendo revelada em Dias Perfeitos. Trata-se de alguém que abandonou um estilo de vida. Abandonou – no sentido de ter cortado a comunicação – uma família de expectativas altas e, aparentemente, posses. Abandonou, ao que tudo indica, uma carreira nas letras ou, como dizer, no conhecimento – ainda que não tenha largado nem uma, nem outro. É alguém que se ressituou, estabeleceu limites e conseguiu encontrar um equilíbrio único, muito possivelmente se mantendo fiel a seus próprios valores: aqueles presentes nas músicas e nos livros, boa parte dos quais estrangeiros. Poppy é também alguém que não se entende com uma das suas irmãs, adepta de valores tradicionais (mesmo que de classe média, ou trabalhadora). Ambos são seres que encontraram dentro de si uma força singular e suficiente para se manter no mundo e serem felizes. Felizes, ao seu modo.

O que, após ver Dias Perfeitos, me remeteu ao livro de Berlin mencionado no começo foi quase uma intuição: a de que Wenders é, no fundo, um pensador/realizador romântico. Não pretendo aqui elaborar nada muito extenso a esse respeito, porventura resgatando a sua extensa filmografia. Revi, há pouco, Asas do Desejo e me parece que há uma forte dose de romantismo nesse filme. Tendo relido Berlin, agora me parece que está tudo muito evidente. 

O romantismo nasceu, como advoga esse autor, na Alemanha. Essa seria uma primeira ligação, mas, sem dúvida, inteiramente insuficiente. O elemento chave, definitivo, está na cena em que Hirayama anda de bicicleta com a sua sobrinha, a qual havia fugido de casa e se hospedado em sua casa por alguns dias. Ela lhe indaga sobre os motivos do seu rompimento com a irmã, a mãe dela (de resto, como fica claro depois, com o patriarca da família). O tio então lhe explica que o mundo não é uma coisa só, mas sim vários. Existem diversos mundos, os quais não precisam se misturar; um pode olhar para o outro e reconhecê-lo sem a necessidade de dele se apoderar ou o converter.

Como fica claro a esta altura, o romantismo é pacifista – e Wenders, ao falar de Hirayama, reconhece esse traço como o mais presente não só nesse personagem, mas dentre todos os que ele já criou. O que não significa, de maneira alguma, que não haja nele, romantismo, um gigantesco potencial revolucionário, uma força tremenda. Acho que esse é totalmente o ponto que Berlin quis mostrar quando levantou o tema da relação desse movimento com a Revolução Francesa. E, quando vemos filmes românticos em seu sentido pleno e mais profundo, feito os dois que acabo de comentar, é como se dentro de nós algumas Bastilhas tombassem.

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Anatomia de uma queda, de Justine Triet

IR MAIS DEVAGAR, NÃO DEIXAR DE CONCLUIR

Anatomia de uma queda, filme em cartaz de Justine Triet, vencedor de Cannes em 2023, é desses filmes maiores, com cadeira cativa, eu diria, na história do cinema. É um filme de tribunal, a princípio, mas extrapola esse gênero tocando em questões que dizem respeito ao matrimônio, à saúde mental e à escrita literária. Acho que aí reside a sua grandeza: nesse destemor do conjunto, no coquetel bem equilibrado conjugando temas centrais do mundo atual.

Que a diretora tenha investido, em primeiro lugar, num filme de tribunal, não é algo trivial. Esse tipo de filme apresenta personagens que perseguem a verdade com sanha, já que se trata de salvar a própria pele, fazer justiça ou simplesmente vencer uma disputa renhida – e nós espectadores vamos junto. Devemos reconhecer que no mundo atual, da pós-verdade, é uma escolha de tema atípica. 

A trama é a seguinte. Um homem, o marido, cai de uma altura considerável do chalé onde a família residia, e morre. Dado o corte na cabeça, passa a pairar dúvida de se teria sido assassinato – por parte dela, esposa – ou suicídio. Um levantamento do histórico do casal dá margem a que essa dúvida se amplie, tornando-se, por fim, acusação. Uma verdade precisa ser encontrada.

Ocorre que ambos eram escritores. Ela, de sucesso; ele, pelejando para ter mais tempo para se dedicar a esse ofício. Motivos para ressentimentos, ciúmes, discórdia, não faltavam, insuflados pela culpa que o marido sentia por não ter evitado um acidente que tinha, no passado, deixado cego o filho do casal. São essas as balizas para que se monte o circo da justiça, com seus juízes, promotores, advogados, técnicos forenses, psicólogos, testemunhas, imprensa.

Para se chegar a uma verdade, requer-se tempo. Um ano se passa entre o indiciamento da esposa e o tribunal de júri. Para nós, espectadores, também: o filme não é curto, cerca de duas horas e meia em que ficamos pra lá e pra cá a partir das provas que vão sendo apresentadas e/ou surgindo ao longo do processo. Há convicções, fundadas em “evidências”, de ambas as partes. Cada especialista ou testemunha chamado, seja pela acusação, seja pela defesa, tem suas certezas ou quase certezas a partir do respectivo quadrado e após ter estudado ou meditado o assunto em profundidade.

Mas aí é que está! Que nível de profundidade? É nesse ponto que eu acho que o filme atinge em cheio o nosso tempo presente e a sua relação com a verdade. Todos, ao que parece, querem “lacrar”, ter a palavra final. Sim, até certo ponto isso é natural: ninguém quer deixar o caso em aberto, quer-se concluir; mas, dentro de quanto tempo? De imediato? Nesse ponto é que entra, a meu ver decisivamente, o fato de a acusada ser escritora de ficção, ou seja, a força da literatura. 

Em pelo menos duas ocasiões ela desmonta conclusões que parecem óbvias, apontando, em contraponto, para um big picture, para algo menos apressado. Uma delas, inclusive, numa das melhores cenas, quando responde ao psiquiatra/psicanalista da vítima, altamente convicto: então, o que se diz entre as paredes de um consultório perante um profissional com anos de estrada (e que não se deixaria enganar facilmente), é obrigatoriamente a verdade? Não existem sutis cuidados cotidianos, externos ao divã, através dos quais procuramos preservar nossa saúde mental e a dos nossos entes próximos? Um misto de amor, esperança, sonho e paciência que, mesmo assim, às vezes não é suficiente?

Porém, não menos importante do que o exercício perene da dúvida como elemento garantidor da verdade – um traço distintivo da literatura e das artes de um modo geral – está o fato de que em nossas vidas, em certas ocasiões, precisamos concluir. Um outro diálogo marcante do filme, já perto do final, ilustra isso. Ele envolve o filho do casal, um garoto de apenas 11 anos que acompanhou todo o julgamento e, tal qual nós, espectadores, de forma sofrida e honesta ainda não consegue saber em definitivo quem tem a razão. Em conversa com sua tutora judiciária ele pede auxílio e ela não sabe como ajudá-lo, a não ser lhe dizendo que há situações que, mais do que plena convicção, demandam uma decisão. E a certeza? Tenho, então, que inventa-la, fingir que a tenho? diz ele. Não, afirma ela, é diferente. 

Como dizem alguns lacanianos, é necessário, a certa altura de uma análise, sair do gozo do pensamento. Uma hora você precisa agir, concluir, em prol da sua liberdade. Depois você se acerta com a razão.

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Priscilla, de Sofia Coppola

ICONOCLASTA POR EXCELÊNCIA E, TALVEZ, NECESSIDADE

Recentemente, revi o documentário que Wim Wenders fez sobre Tóquio, Tokyo Ga (1985), e é a partir dele que encontro elementos para tentar entender esse outro filme atualmente em cartaz, Priscilla, de Sofia Coppola. São ambas criações que reviram o passado e trazem personagens de uma, digamos, realeza artística. Priscilla resgata a relação entre o Rei do Rock, Elvis Presley, e a jovem texana que ele conheceu numa base militar norte-americana na Alemanha do pós-guerra, tornando-a sua namorada e, pouco depois, esposa: Priscilla Presley. Já o filme de Wenders se refere ao cineasta japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes em sua totalidade foram feitos e se passavam naquela cidade. Wenders ama o cinema de Ozu e quis melhor compreender o que estaria por trás desse amor. Ele entrevistou alguns dos seus colaboradores, então ainda vivos, cujos depoimentos revelam, nesse personagem, uma verdadeira majestade – um deles, aliás, é explicito a esse respeito –, pela forma como ele tratava as pessoas, como imprimia sua marca nas suas criações.

Mas a conexão “régia” entre ambos esses filmes não é, nem de longe, a principal. A minha tese é a de que Sofia Coppola é a expressão, nos dias atuais, do cinema de Wenders; ou melhor, de que ela é wendersiana por excelência. Se não, vejamos.

Priscilla, que se baseia num livro de memórias da própria personagem-título (além de tê-la como produtora executiva), nos apresenta um Elvis, basicamente, freak. Eu não assisti ainda ao também recente Elvis, de Baz Luhrman e, portanto, posso estar sendo leviano ao supor que essa nova versão irá ferir quem dele gostou e/ou através dele aumentou a sua admiração por esse ícone da música ocidental. Sei que traz um “culpado” para o quão perturbado ele teria ficado ao longo da carreira: seu empresário, os negócios.

O filme de Sofia Coppola vai por um outro lado. Ressalta o que seriam as qualidades de um príncipe, que descobre a sua princesa e procede conforme todo o script, tratando-a, de início, com o máximo de decoro e respeito. Em sua profissão, ele era um puro animal que mexia com a libido das massas. Mas, com ela, beirava a pudicícia! (Tudo bem: ela era uma garota quando se conheceram e começaram a namorar, mas, a certa altura, houve a permissão da sociedade e, principalmente, dela; contudo, o ato carnal propriamente só se consumou após o súbito casamento, quando havia muito que eles já compartilhavam o leito). 

Além disso, até em situação pior do que uma princesa de verdade, Priscilla não tinha direito nem a trabalhar: tinha que estar sempre no outro lado da linha quando ele telefonasse (não havia celulares então). Era, em suma, um bibelô – mesmo quando estava prestes a ser mãe, ele resolve que esse era o momento de “darem um tempo”. Sem muito alarde e bem postumamente, Elvis cai do trono; primeiro, com o livro da sua ex, em seguida, com o filme de Sofia.

O que, além de um senso de justiça histórica e uma certa sororidade, teria atraído Sofia na direção da história de Priscilla? Respondo que vejo uma enorme coerência com a sua busca propriamente cinematográfica. Os filmes de Sofia Coppola em geral trazem o lado B. Sendo filha de quem é – e tendo adotado a mesma profissão que o pai, cineasta de épicos – eu acho que ela resolveu se dedicar à franja, àquilo que resta. Como a dizer que, no final de cada dia de filmagem, sobra ainda algo a ser contado – algo da ordem do doméstico.

Se formos reparar, na maioria dos filmes dessa diretora há a presença de alguma coisa grandiosa que, contudo, aparece enquanto mera insinuação. Em O estranho que nós amamos (2017), é a Guerra Civil Americana, em Maria Antonieta (2006), a Revolução Francesa, até mesmo em Encontros e desencontros (2003), uma Tóquio e um Japão desafiadoramente modernos e de difícil (ou impossível) leitura; e, invariavelmente, o que é mostrado são as repercussões dessa ordem grandiosa, ou pública, no lado de dentro, no ambiente privado – no caso desses três, respectivamente, no internato feminino, no grande palácio, nas dependências do hotel. E quando esse espaço privado não fica suficientemente claro nas retinas do espectador, Sofia ainda recorre aos nossos ouvidos, via trilha sonora: nunca hei de esquecer dessa parte de Maria Antonieta, com canções de bandas de rock dos anos 1980 (Siouxsie, Gang of Four, Adam and the Ants, Cure), as bandas que eu escutava e que jamais esperaria num filme “de época” como aquele.

Em Priscilla, temos tudo isso novamente. Temos a mansão Graceland – quase uma prisão, aliás – mas, mais ainda, a certa altura, numa cena em que o marido estelar adentra a residência com o seu onipresente entourage e todos se sentam à mesa para uma refeição: o que aparece na tela, de forma quase obstinada, é somente o rosto um tanto incrédulo da esposa. Não é o público – ou, no caso, o semipúblico – que interessa, mas o privado profundo.

Dou razão a quem, a esta altura, estiver se perguntando: e cadê o Wim Wenders e seu filme homenagem nisso tudo? Tokyo Ga é uma riquíssima meditação sobre esse meio de expressão, partindo da obra de Ozu (um cinema, diga-se de passagem, muito doméstico). O narrador, em inglês(!), é o próprio Wenders que, lá pelas tantas, lança aquilo que eu chamaria de luz decisiva ao teorizar sobre o significado do que está na lápide do túmulo de Ozu: o mero velho caractere chinês da nulidade, MU, “nothingness”, dispensando até o nome de quem lá descansa. Essa nulidade é, ele pensa, o contrário da realidade, que é algo que todos nós carregamos. Cada um de nós, espectadores, está imbuído de realidades, imagens, ideias e, com elas, vamos ao cinema. A grande magia então acontece quando algo lá na tela, qualquer coisa, qualquer elemento, também uma realidade (visível ou audível), nos captura porque conversa com algum elemento da nossa realidade, ambos possuindo verdade. É algo de muito privado; e não é todo cineasta que consegue chegar nisso. Ozu, na opinião de Wenders, conseguiu; a sua Tóquio, não mais presente, conversava conosco (ou com ele, Wenders) nesse nível, remetendo a estados nossos os mais íntimos – não à toa ele dedica o filme aos seus pais e ao seu irmão, o seu núcleo familiar. Uma comunicação se dava, ligando seres tão distantes geograficamente (Wenders, ainda como espectador em Berlim, Ozu como “rei” de Tóquio).

Mas insistamos em Tóquio! Novamente, será por mero acaso que Sofia Coppola situou a sua história de amor mais pungente, o seu encontro-mor cinematográfico, Encontros e desencontros, nessa cidade do início deste século? Cidade essa, como fica muito claro em Tokyo Ga – e no recado final de Ozu sobre a vigência do nada –, tão propensa ao desencontro? O título original desse filme, “Lost in translation”, creio que nos diz muito. Referindo-se à barreira linguística enfrentada pela dupla amorosa norte-americana perante a cidade, acaba pairando sobre os personagens que, ainda assim, dão conta de encontrar, ou de criar, um refúgio comunicativo (entre si mesmos). A realidade de um acaba atingindo a realidade, o verdadeiro, do outro e, por essa via, saem, saímos todos, da nulidade. Isso é ou não é Ozu/Wenders?

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Rodas de Gigante, de Catarina Accioly

A expectativa era grande de ver o documentário da Catarina Accioly sobre os últimos anos de vida de um dos membros do (pouco populoso?) panteão da arte candanga, o grande diretor de teatro Hugo Rodas. E o filme exibido ontem na Mostra Brasília do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro correspondeu plenamente ao que eu esperava. É um retrato fidelíssimo e, ao mesmo tempo, apaixonado, desse criador prolífico e profundo, mestre de várias gerações de atores e demais profissionais das artes cênicas da cidade.

Hugo era um ser intenso, que viveu a vida assim, até o final. Cercou-se de amigos e parceiros, os quais o ajudaram a enfrentar o envelhecimento e a doença dos anos finais. Só aí, já teríamos uma bela história. Catarina, William, Dani, Abaetê e uma imensa fila de amigos e discípulos o cercou de cuidados, retribuindo, possivelmente, o amor que ele soube dar. Ao longo de quatro anos a câmera colou nele, fazendo também parte desse zelo todo.

Mas essa bonita história documentada não seria a inteira verdade se não mostrasse, também, a força descomunal desse homem – daí, inclusive, o título: Rodas de Gigante. Uma força cujas origens são reveladas ao longo do filme. Tê-lo acompanhado em viagem à sua terra natal, o Uruguai, foi um redondo acerto da equipe já que lá ainda restam outras “famílias” suas: seus antepassados enterrados, parentes vivos, memórias, mas também parte da sua trupe teatral do final dos anos 1960. Reencontros festivos de alguém naturalmente gregário, amoroso.

Um segundo manancial de inesgotável energia passa pela cidade onde escolheu viver: esta Brasília, de cara, impetuosa, quase “exibida”. E, mais especificamente, pela Universidade de Brasília, onde foi professor. Talvez seja impossível dissociar, em seu espírito, uma da outra. A UnB é uma cidade dentro da cidade. Hugo trabalhava incansável na primeira, porém sempre mirando a segunda, o todo – construindo-a, feito um pioneiro; em seguida, melhorando-a, corrigindo-a, tudo por meio de suas criações. De certa forma, tentando honrar seu projeto civilizatório e utópico de, no dizer do crítico Lorenzo Mammì, “modernidade suave”. Sua arte, entretanto, conforme ele mesmo afirma a certa altura, era inapelavelmente política. Não teria como ser arte se não fosse: nada de diversão, mas, precisamente, “soco no estômago”.

O Hugo Rodas mostrado por Catarina Accioly é um sujeito simples, sem frescuras, que celebrava seus aniversários, cultivava suas plantas, estabelecia rituais e, a certa altura da sua trajetória teatral, ainda em Montevidéu, foi “salvo” pela dança, vertente das artes cênicas intrinsecamente ligado ao corpo – não que a palavra fosse por ele desprezada, como fica claro num momento, durante o ensaio de uma peça (dentre os muitos que aparecem), em que se dirige aos atores. Era desprovido de artifícios; xingava, muito, quando tinha que xingar. Cantarolava canções latinas, tangos, milongas, boleros, um repertório estrito e muito particular. Tinha transparência, tal como as superquadras ou a linha visível do horizonte; estava a milhas e milhas de distância do barroco.

E mais: era poliglota, falava diversas línguas, mas, segundo ele mesmo (e conforme a evidência gritante do seu delicioso portunhol), “todas mal”. Não era ali, nesse grau de sutileza, que estava a questão, mas em saber que um ser humano com fome não é a mesma coisa que outro sem. Humanidade, técnica, espírito e coração: é disso que se trata quando o assunto é Hugo Rodas. Aplausos mil à diretora e sua equipe que tão bem nos mostraram (ou lembraram) (d)isso.

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Barbie, de Greta Gerwig

Barbie era “alguém” que estava banida da nossa cultura – ou assim tendo a crer. O seu resgate por uma cineasta jovem e sintonizada com o feminismo parece estar na ordem daqueles erros meio que sagrados a que a poeta e crítica Anne Carson se refere em seu “Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso”. Com a erudição e elegância que lhe é característica, ela se reporta a Aristóteles, apresentado, liricamente, o seu pensamento sobre o uso da metáfora: ela “faz com que a mente sinta a si mesma | no ato de se enganar”, daí resultando a lição de que “não só as coisas não são o que parecem, | e por isso nos enganamos sobre elas, | mas que também esse engano é valioso.”

A trama do filme é bastante engenhosa. Em Barbieland, onde todas as “mulheres” são Barbie, mas onde também existe, como nas lojas, aquela Barbie prototípica, a própria –  protagonista – passa a apresentar disfuncionalidades cuja origem, fica sabendo, está no mundo real em que a sua “dona” enfrenta uma crise existencial. Indo a esse mundo a fim de resolver o problema, ela descobre que a pretensa dona é uma adolescente que nem se liga mais nela – se é que algum dia se ligou – acusando-a, com toda a razão, de fascista. Mas, aos poucos, surge a revelação de que a verdadeira dona da boneca é a mãe dessa adolescente. Em vez da filha, é ela que, diante de todos os perrengues que as mulheres, vítimas do patriarcado, enfrentam na vida real, está com as tais questões existenciais.

É bom que eu pare por aqui no que se refere à trama. Além de não querer estragar o filme de ninguém com spoilers, isso se deve a que eu a trouxe à baila quase que somente para evidenciar que a Barbie de Greta Gerwig parte de um ponto isento de qualquer alienação: o patriarcado e o fascismo são realidades das quais ela rapidamente se descobre partícipe; a liberdade feminina, que ela emblematizaria, é circunscrita a um mundo de pura fantasia. Urge uma desconstrução de si.

E é precisamente nessa necessidade que eu creio que reside a natureza desse filme enquanto metáfora, dentro dos moldes aristotélicos acima explicitados. Do que exatamente Barbie, o filme, é uma metáfora? O que é que o tornaria digno do título de “engano valioso”? Do que e em que medida as nossas mentes se dão conta ao topar com um “erro” tal como esse? A resposta a essas perguntas reside, ao meu ver, nas desconstruções que temos diante de nós, em nossas vidas, tanto coletiva como individualmente.

Enquanto humanos, enfrentamos, tal como a dona (adulta) da Barbie do filme, questões existenciais de ordens as mais variadas. Além do patriarcado – obviamente um problema que incide em maior grau sobre as mulheres, não deixando de nos prejudicar a todos – está o fato de que não somos eternos, que iremos morrer um dia, que tudo tem um fim. Aceitar tal condição, ao invés de acreditar que seremos capazes de, algum dia, graças à ciência, viver eternamente, bom, eu diria que está aí uma desconstrução muitíssimo urgente.

Numa perspectiva mais realista, viver para sempre talvez esteja hoje no horizonte (fictício) de poucos, pouquíssimos bilionários. Prolongar, por todos os meios, a nossa juventude, é que não. A medicina atual e as suas pretensões/promessas/procedimentos são um pacote que carece de mudanças já. Alguns autores corajosos a quem tenho dado atenção, às voltas com a própria morte, apontam para tal (de Jean-Claude Bernadet com o seu O corpo crítico, a Contardo Calligaris em seu O sentido da vida), mas talvez nenhum tenha sido tão mordaz e precisa a esse respeito quanto a cheia de vida Tati Bernardi em crônicas suas como “Doutor showman” e “Funcional” (ambos na coletânea Homem-objeto e outras coisas sobre ser mulher). Nessa última, ela aborda essa exigência que habita boa parte dos consultórios e as falas dos médicos, a funcionalidade. Diz ela, a título de elucidação: 

“Pessoas funcionais não têm fobia de comemorar o Ano-Novo em praias da moda com milhares de outras pessoas funcionais que, quase sempre, só conversam coisas meio tolas e da moda. Conversar coisas tolas, inclusive, faz um bem danado e, por isso, é uma das prioridades dos funcionais. O funcional tem como base fundante estar bem. Se você tem como base fundante estar mal, você não é um funcional.”

Lembrei muito disso ao ver a Barbie do filme, ainda em Barbieland, começar a “falhar”, sentindo, sem querer e por vez primeira, seus calcanhares tocarem o chão.

No plano individual, a principal desconstrução, ao meu ver, gira em torno de não sermos tão rígidos, de aceitarmos que tudo muda e de sermos capazes de nos adaptar às circunstâncias. Barbie é, no fundo, uma pessoa mimada (condição, lembremos, de toda boneca que se preze). Quantos de nós, diante da primeira dificuldade, não nos negamos a seguir em frente, esperando que algo de sobrenatural aconteça e reponha tudo em seu lugar, faça chover, de novo, no nosso jardim – em vez de se reinventar ou, então, criar as condições para, por outros meios, chegar onde queríamos? Quantos de nós achávamos que Barbie era um assunto superado, desprovido de qualquer conexão com as nossas vidas tão lineares, os nossos estudos tão aprofundados, sendo, no entanto, incapazes de trocar com quem está do lado – e pode, de fato, nos ajudar?

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Tebet versus Ciro

RUMO AO PRIMEIRO TURNO

Ontem teve a segunda entrevista dos presidenciáveis com a jornalista Renata Lo Prete no portal G1, desta vez com a Simone Tebet. A primeira, na semana passada, foi com o Ciro Gomes. Assim, podemos dar por encerrado esse ciclo, já que semana que vem será o amplamente descartável Janones; e os outros dois, líderes nas pesquisas, simplesmente não vão, perdendo, desse modo, ótima oportunidade de expor suas ideias ao longo de hora e meia (o populismo não deixa). Já há, então, elementos suficientes para uma avaliação sobre o voto que darei no primeiro turno que se aproxima.

Ambos têm pontos em comum. O primeiro é o fato de serem formados em direito. Ciro evoca para si uma condição de professor dessa disciplina, ao passo que Tebet se identifica como uma operadora dele, direito (ou seja, uma advogada). Acho que isso já começa a dizer algo, que está no terreno da humildade: ele, tirando uma de scholar, de suposto dono da verdade; ela, revelando a postura de uma raladora dotada de razoável experiência.

O segundo ponto em comum também apresenta, a certa altura, um distanciamento significativo:  o apego, mais do que bem-vindo, ao planejamento. No caso de Ciro, o plano já está pronto e publicado em livro. Tudo está lá, diagnosticado, previsto e equacionado, uma legítima panaceia (ou, conforme o dicionário, “remédio para todos os males”). Tenho a impressão que Ciro, acima de tudo, é um bom vendedor e, enquanto tal, é claro que tinha que mostrar alguma mercadoria. 

Já Tebet é mais prudente. Sim, um plano está sob elaboração e logo virá a público, mas relativo ao tema urgente e primordial da fome. Um Novo Bolsa-Família, mais inclusivo do que o atual Auxílio Brasil e com horizontes mais amplos do que o seu predecessor. Mas, de resto, sobre esse tema, trata-se de retomar o controle sobre o orçamento da União através da recriação de um Ministério do Planejamento, um trabalho de reconquista palmo a palmo, uma construção tijolo a tijolo, como tudo o que nesta vida é realista e busca uma solidez.

Uma terceira e benfazeja confluência é a visão de que os militares só podem assumir cargos na administração pública uma vez tendo abandonado a ativa do serviço que prestam (ou seja, tendo passado para a reserva). Tebet, no entanto, vê a aplicação disso restrita aos cargos de alto escalão, não vislumbrando impedimento no aproveitamento de quadros das três forças com qualificação suficiente para cargos menores, de gestão. E é em detalhes como esse que se evidencia o que talvez seja a diferença maior entre ambos esses candidatos. Tebet está sempre em busca da conciliação, enxergando que atitudes extremas geram descontentamentos entre as partes, ao passo que Ciro prefere, via de regra, a imposição, a intervenção a partir de cima. 

É muito claro: ele é desenvolvimentista e, por isso, fundamentalmente, não consegue firmar alianças com os partidos de centro. A pergunta crucial a esse respeito não escapou à entrevistadora: afinal ele gosta ou não do Lula? É evidente que gosta, já declarou isso na eleição passada, quando toda a corrupção em torno a essa figura já estava patente – e, portanto, não seria motivo para uma descoberta e consequente repúdio posterior, como parece ser o caso com Ciro. Conforme ouvi da boca de uma boa analista, Ciro só terá chance em uma eleição no dia em que Lula não concorrer. São farinha do mesmo saco (desenvolvimentista).

E o problema com o desenvolvimentismo é que você só conta com a força do Estado, você dá as costas para setores que estão lá e que podem sim ser convocados, ou conquistados, a (re)erguer o país. O desenvolvimentismo é uma solução que já deu mostras de ser de curta duração, insuficiente diante do que é necessário. O que é necessário requer contar com todas as forças existentes no país, quer sejam essas as forças produtivas (ou iniciativa privada), quer sejam as próprias Forças Armadas ou a sempre a postos força de trabalho. Trata-se de esforço coletivo. 

Tebet tem provado ter os atributos para liderar este país, demonstrando possuir talento político e perseverança. Foi capaz de se manter em meio a toda a turbulência da “terceira via”, em meio a tantos “leões” que já se retiraram. Além disso, tem a consciência de que “ou o século XXI será o do desenvolvimento sustentável, ou então será o último da nossa história”. A emergência climática que vivemos não lhe escapa. Mas o principal é que tem uma convicção muito arraigada na importância da democracia, enxergando-a, inclusive, como vital no próprio combate à fome (urgente) e às desigualdades. 

Ciro Gomes não é bem um último leão da terceira via, porque ele nunca foi de fato dela (e sim um satélite da segunda), mas tem a mania de rugir. Devia parar com isso, de uma vez por todas, e dar lugar ao que de verdadeiramente novo surgiu de 2018 para cá: a extraordinária força do feminino – e de uma mulher em particular.

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Um projeto de nação

PRA ONDE CORRER?

As vozes mais coerentes do Brasil atual, dentre as quais reina, na minha opinião, a do economista Marcos Lisboa, nos dizem que há poucas chances de escaparmos do atoleiro. Não se trata somente de dar ênfase a uma austeridade fiscal (que fica cada vez mais distante), mas de, no balanço da política com a técnica, elaborar políticas públicas que não sejam um mero desperdiço de dinheiro ao sabor do populismo.

Por outro lado, temos que reconhecer, finalmente, o crescimento avassalador do cristianismo evangélico, um fenômeno social que já adentrou a esfera política – e cujo coroamento foi a entrada de André Mendonça no STF. É urgente que leiamos o que Juliano Spyer escreve em seu Povo de Deus. A explicação do bolsonarismo, em boa parte, está ali. Hoje, um terço da nossa população é evangélica; e oitenta por cento desse um terço é bolsonarista. Isso quer dizer que Bolsonaro tem, só aí, 26,5% dos votos; e que, a despeito das últimas pesquisas de intenção de voto, ele não é carta fora do baralho, longe disso.

Ou seja, nem economia, nem política estão com bons prognósticos. Diante disso, o que fazer, pra onde correr? Combater o que já é uma realidade assentada nas crenças de cunho pessoal (a fé) de cada um? Ou entender que, no fundo, foi a mediocridade nossa como nação democrática, a incapacidade de nos dar conta do quanto somos insensíveis ao sofrimento alheio, herança segura de um passado escravocrata, que nos conduziu a isso?

Tá, dirão muitos, mas o que dizer do PT e dos seus governos, com quase 15 anos no poder? Por acaso não foi a chance de mostrar algo de diferente nessa nossa história senhorial, violenta e marcada por privilégios? Sim, eu diria, foi uma chance e tanto, mas desperdiçada. Em primeiro lugar por esse partido não ter sido capaz de manter um modelo econômico que estava dando certo e contava com a força da iniciativa privada, geradora de oportunidades e de crescimento. As pressões internas por parte da sua intelligentsia, fortemente avessa a evidências e irremediável dona da verdade, não permitiram que se seguisse nesse caminho, impondo uma nova e furada “matriz” nesse campo.

Em segundo, porque as suas lideranças, seguidas pelo partido como um todo, adquiriram pouco a pouco um apego ao poder. Se um sentimento legítimo de querer um maior bem-estar para todos – de inclusão social – esteve presente ao longo dos primeiros anos dessa agremiação partidária, com as vitórias nas urnas e o transcorrer dos anos os mais pobres e suas carências passaram a ser o mero componente de uma equação, em vez de seu ponto de chegada. Este passou a ser o poder em si, custe o que custar – e acabou custando uma Petrobrás quase inteira.

A Constituição de 1988 deu ao Brasil, finalmente, a oportunidade de ver um Estado, no sentido pleno da palavra, em funcionamento. Quase cem anos de República foram necessários para tal: a saída de um regime escravocrata e de um passado colonial não se dá de uma hora para outra, diversos estados – oligarquias, na verdade – ainda operavam no Brasil prévio à assinatura dessa versão mais atual da nossa Carta Magna. Esse Estado é o nosso projeto, aquilo ao qual devemos nos dedicar, uma vez que não foi deveras implantado ainda.

Um Estado que não perca jamais de vista os mais pobres, fazendo de tudo para que esses venham a ter vidas dignas. E fazer tudo não significa dar de graça. Esse caminho, já vimos, implica na falência a longo prazo do próprio Estado, é um desserviço a todos, principalmente ao mais pobres. Fazer de tudo é impulsionar as forças existentes de modo a que elas carreguem junto quem está disposto a crescer. Esse é, justamente, o papel que as igrejas evangélicas têm assumido ao longo dos últimos trinta, quarenta anos, no lugar de quem? Do Estado. A lógica da milícia, tão clara no bolsonarismo, aqui também se revela: Estado, ou estados, paralelos, novas oligarquias, velhas relações sociais e de poder.

Um outro nome, mais pomposo, que é dado a isso que estou me referindo como Estado é “estado democrático de direito”, algo que nos aproxima das demais nações, nos iguala na busca de um único propósito de liberdade – e que contém, em sua fórmula, tanto a soberania popular e o primado da lei quanto um punhado de garantias individuais. O fortalecimento desse modelo deve ser nosso objetivo-mor, mas creio também ser fundamental, nesse processo, que olhemos para o nosso particular e saiamos um pouco do molde ou da rota (deliremos, em suma, levando em conta que na etimologia desse termo está um “sair do caminho”). Não sei se é o caso de inscrever isso na Constituição, mas eu penso que uma política de cotas raciais para ingresso nas universidades, que se encaixa entre aquelas conhecidas como “afirmativas”, é algo que precisamos manter por um longo tempo. Não é concebível que sejamos um estado democrático de direito com alguma credibilidade sendo, ainda, uma sociedade racista. 

E o mesmo deveria valer quanto a uma sociedade machista. 

Estão aí duas particularidades nossas que turvam todo esforço de sermos, de cara, justos. O Estado, nesses casos, tem que agir, não pode se omitir em nome de uma pretensa cidadania com direitos iguais para todos. Essa pode valer para alguns países europeus. Por aqui, se não houver a afirmação dessas políticas compensatórias, a “concorrência” vai ser sempre desigual – o que fere um princípio básico do próprio liberalismo. Patinaremos ad aeternum.

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Marighella, de Wagner Moura

O PONTO EXATO EM QUE TUDO SE PÕE A PERDER

Em sua entrevista ao Roda Viva, Wagner Moura, diretor de Marighella, defendeu-se da acusação de maniqueísmo nessa sua estreia atrás das câmeras. Assisti ao filme ontem e tenho a impressão de que concordo com ele: por mais difícil que isso seja, num filme eminentemente político, não há o endosso dessa ou daquela corrente política, não há o traço de uma militância. O que há é uma simpatia por essa figura inconformada com as injustiças à sua volta, ao mesmo tempo que líder por natureza.

Em outros termos, um personagem cuja história há muito já deveria ter sido contada pelo cinema brasileiro – afinal, a sua morte se deu há mais de cinquenta anos. Digo o cinema, mas isso também se aplica a outras formas de expressão e de investigação da verdade. A bela canção de Caetano Veloso, “Um comunista” (2012), a respeito desse personagem, é mais ou menos contemporânea ao início das filmagens (2014), o mesmo ocorrendo com a biografia que inspirou Moura, escrita por Mário Magalhães. Fazendo as contas, são 43 anos, vai – de silêncio.

Como explicar isso? Acho que uma das respostas está no próprio filme, que não edulcora a violência vivida pelo personagem e por aqueles à sua volta. O Brasil é um país violento, historicamente violento, rotineiramente violento, onde se resolve muita coisa a bala, inclusive a política e suas contendas. Há cenas fortes de tortura, espancamentos, tiroteios e assassinatos, como que à revelia das demais (a partir da primeira e culminando com a última), em que temos um pai, um marido, um amigo cioso e brincalhão, um brasileiro genuinamente gentil (mas também destemido). Em suma, é como se a violência, presença palpável e obrigatória em toda narrativa séria a respeito dos acontecimentos que aqui se dão, impedisse (ou retardasse) a tematização, por prosa e verso, de vidas que poderiam ser exemplos.

Vidas são construções complexas. Consequentemente, o seu alcance justo se dá somente por meio de narrativas dispostas a adentrar as zonas cinzas ou, se quisermos, escuras. Nem tudo nelas é luz; mas o propósito de aprender junto a elas é um propósito iluminista, sim. Porém, quando a violência se faz presente, parece que tudo isso vai pro espaço, as águas se turvam, uma contaminação se dá, pondo tudo a perder. Os exemplos ficam só para os próximos, aqueles que tiveram a oportunidade de conviver de modo direto.

Agora, no caso de Marighella, tem duas particularidades que chamam a atenção. A primeira delas é que ele foi um político. Não era um mero guerrilheiro, como eu o classificava, mas sim um deputado federal constituinte, alguém que se elegeu mediante uma candidatura dentro do sistema democrático. Era um parlamentar. A segunda particularidade é a de que ele acabou virando um guerrilheiro, autor, inclusive, de um “Manual de guerrilha urbana”. Ou seja, alguém que, a certa altura, avaliou que não bastavam as palavras e que era preciso recorrer às armas e a atos em que a força física está presente de forma preponderante. 

Acho que esse é justo o ponto em que o Marighella de Moura se descola do referido maniqueísmo (ou da hagiografia, uma outra acusação que ele enfrenta): a opção do uso da violência como forma de luta política não me parece que seja algo a ser subscrito por esse diretor. É (ou foi) algo do personagem do seu filme, ponto. Por conseguinte, poderíamos dizer que essa obra não sofre daquela contaminação a que já me referi – uma contaminação da qual a política dita de esquerda, infelizmente e mesmo que de forma inconfessa, não consegue escapar.

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Sobre o poder da oração

UM INCIDENTE FORA DE LUGAR

Sou ateu e, aos 55 anos e em meio a uma pandemia, me deparo com o fenômeno da morte à minha volta. Sim, eu já tenho algumas mortes impactantes em minha jornada pela vida, a da minha mãe, há 15 anos, sendo a principal. Seu irmão, meu querido mas longínquo tio Juan, a sua esposa, Itna, e dois cachorros (um deles há três dias) também constam dessa penosa lista. Porém, eu pouco me indaguei mais a fundo, até este momento, sobre esse tema. Pra um ateu, tudo acaba nesse momento do último sopro e a pergunta que fica é: você dá conta?

Com a Covid-19 o tema da morte tem frequentado grupos de whatsapp e outras redes sociais. Pessoas em perigo ou com parentes idem solicitam, aos seus pares, orações. Eu mesmo acabo de fazê-lo pelo meu pai, que contraiu a doença e está, neste momento, num leito de hospital. Um outro participante do grupo onde postei essa solicitação, cujo pai também se encontra na mesma peleja, o havia feito antes. E o que me motivou a escrever este texto está na reação de uma das participantes (uma terceira figura) a esse pedido, solicitando-lhe o nome, a fim de poder incluí-lo nas suas preces.

Esse é o ponto em que começa a minha, como dizer, (santa e perene) ignorância. Dado o fato de eu não orar, essa requisição me bateu por um lado que desembocou no cômico. Dou-me conta que, sendo o cinema (como já afirmei anteriormente em algum texto) a minha igreja, eu de imediato iniciei uma cena na minha cabeça: em alguma repartição no céu, um funcionário vestido com terno, gravata e tudo, recebe a mensagem e, tendo a incumbência de fazê-la chegar ao Destinatário – seja por meio de e-mail, fax, whatasapp ou memorando/pergaminho que ele insere em alguma tubulação –, a primeira coisa que faz é verificar se o nome do beneficiário consta ou não da solicitação. Caso não conste, imagino que a mensagem vá para uma espécie de arquivo-morto, não chegando jamais aonde devia. É preciso saber como funcionam as coisas lá em cima; caso contrário, tempo perdido! Há solenidades e protocolos a serem seguidos…

Peço, por essa torpeza, mil desculpas. Na verdade, como pude me instruir ao comentar isso com uma outra pessoa, o que ocorre não tem nada a ver com filmes, mas sim com o ritual da oração. Creio que uma oração em que, em vez do nome, se peça simplesmente pelo “pai de fulano” também tem o seu lugar, mas a forma “correta” – ou, ao menos, a forma que a muitos foi ensinada como tal – de performar o ritual é com o nome

E ritual é algo muito pessoal, que tem que ser respeitado. Quem não tem o seu? São formas de conjurar energias do cosmos em prol de algo, seja o que for: chegar todos os dias na frente do computador (nosso escritório atual) e abrir essa tela primeiro, depois aquela, depois puxar a informação de uma e inserí-la na outra e seguir assim até o final do expediente; ir, na quadra de tênis, para a posição de saque e lembrar de tudo o que há de se fazer (um balanço do corpo, olhar para a bola quando está lá em cima, amolecer um pouco a munheca, girar o braço com rapidez no golpe), tudo isso é uma exigência para que a bola entre e você tenha alguma chance de ganhar o ponto.

Então, é necessário entender que se alguém te pede o nome do teu pai, ou de quem quer que seja, para incluir em sua oração, esse é o sinal de que aquela pessoa está disposta a fazer – vai fazer – , da forma que acredita ser correta e eficaz, uma ação em prol de um ente querido seu; e não há nada de mais valioso que alguém possa fazer por você. Se um ateu não consegue entender isso, então, meu caro, é melhor ele (você, eu) se desfiliar dessa crença sã e aderir a alguma seita fanática, dentre tantas ao seu alcance, porque lá é o seu lugar, entre os parvos.

Mas não quero fugir do espinhoso tema inicial, a morte, e sobre como essa possa pesar sobre um ateu. Primeiro, sempre é preciso dizer que não é algo que eu deseje, nem pra mim, pros meus e nem pra ninguém. Mas se ela vier – o que é inevitável –, ao quê se apegar, como não sucumbir à dor, à perspectiva da solidão e, principalmente, à ausência de porquês no que tange à vida (o desânimo quanto a ela)? 

Quando eliminamos as narrativas (ou os filmes) sobre um além, quando o tempo regulamentar se esgota, de fato, aos 45 do segundo tempo (salvo alguns acréscimos), eis que, parece-me, que surge o valor do presente, ou melhor, eis que o presente surge em todo o seu valor. E, pra mim, o presente é feito primordialmente de ações, ou gestos, enfim, de algo que se assemelha ao que o artista passa o seu tempo a fazer: coisas que ficam, coisas que perduram uma vez inscritas nas nossas memórias, coisas que são… eternas. Não há morte que possa suplantar a variedade, a profundidade e a beleza das ações e dos gestos que nós podemos fazer em vida. A morte é sempre igual, monótona. Nós, não, nós somos criadores, nós somos capazes, dançarinos cósmicos multifacetados; ela, ela é meramente um incidente fora de lugar.

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Lições

CHEGA DE MAUS-TRATOS

É, atualmente, um tema comum, de escrita e de conversa: o que a pandemia tem nos trazido de lição? Digo “tem nos trazido” e não “nos trouxe”, porque ainda não sabemos por quanto tempo mais teremos que ficar confinados (claro, se não formos covidiotas, esse termo tão preciso que ouvi o outro dia, descrevendo aqueles que insistem que é uma gripezinha e circulam por aí sem medo e sem máscaras, contaminando e sendo contaminados).

O estalo para escrever a esse respeito me veio hoje cedo, ao ver uma foto, no jornal, do Paulo César Pereio, um grande ator brasileiro, que encarnou como poucos o cafajeste (o típico macho brasileiro), sendo vacinado. A explicação para essa precocidade – afinal, estamos ainda no raio das 15 milhões de doses em território nacional, quando serão necessárias mais de 440 milhões – vinha na legenda: ele é um dos moradores do Asilo dos Artistas, no Rio de Janeiro. Pra mim, a lição mais evidente tem a ver com essa aparição repentina (ou nem tanto, já que levamos dez meses nisso) de tudo o que maltratamos, antes, bem antes da chegada da Covid-19, todos aqueles pelos quais o nosso presidente da República, dentro da sua necropolítica, não mexeu uma palha: os artistas e os informais, aqueles que vivem, praticamente, do que o dia (ou a noite) lhes apresenta.

Alguns poderão dizer: como assim, e o auxílio emergencial? E a Lei Aldir Blanc? Em resposta, eu afirmo: ambas iniciativas do Congresso, a contragosto do presidente e dos seus áulicos. Cansamos de ver os seus apelos para as pessoas se jogarem de volta à economia, contando, para tal, com a ilusão da cloroquina e similares, bem como com uma lenda de que brasileiro seria naturalmente imune. Além, é claro, do consolo de que “todos morreremos um dia”.

Artistas são, em grande parte, trabalhadores informais. São pouquíssimos os que têm salário. A maioria se vira, dando aula, criando micro e pequenas empresas de prestação de serviços, empreendimentos de porte suficiente para a sobrevivência, muitas vezes, pessoal. A identidade desses trabalhadores – acostumados a, digamos, uma visibilidade – com o trabalhador informal de baixo ou nenhum reconhecimento – todos os invisíveis de que tratam alguns pesquisadores da área social e que, de repente, explodiram aos olhos dos formuladores de políticas – passa, eu diria, não só pelo aspecto da precariedade contratual que ambos ordinariamente experimentam, mas, também, por um certo vínculo que ambos têm com uma necessária – porque humana – liberdade.

Pois por mais precário que esteja, o informal invisível é dono do próprio nariz. No cálculo dos prós e contras de uma carteira assinada e de um salário mínimo, com toda a aporrinhação de chefe e tudo o mais de um emprego formal, muitas vezes opta-se pela alternativa do serviço diário, mais bem remunerado na hora, mas sem direito a coisa outra alguma – só que podendo avisar que “hoje não vai dar, deixamos pra amanhã” ou mesmo, dependendo das condições do mercado, mandar o chefe babaca praquele lugar quando der na telha.

Já a liberdade do artista é um pouco diferente: ela está inscrita no seu próprio fazer, a arte sendo, como já definiu Mário Pedrosa, “o exercício experimental da liberdade”. Posto de outra forma: se o que resulta da sua produção não for algo que contenha, em alguma medida, liberdade, não é arte. É um tanto mais complexo; e essa complexidade é exatamente o que incomoda a tantos políticos da cepa – autoritária – do presidente. A arte incomoda porque ela é democrática por essência, ela nunca se dá por satisfeita com uma única e definitiva resposta às coisas. 

Os autoritários, quando chegam ao poder, se vislumbram nele para todo o sempre (vide o facínora Trump). Eles acham que são a resposta, que têm a resposta para tudo: não cabem mais críticas, não cabem os que pensam diferente ou se desviam do modelo que eles, autoritários, estabelecem. São, por conseguinte, adversários da democracia, esse regime em que o poder passa, periodicamente, de mão em mão – e em que o exercício de emitir opiniões e de ouvir a voz do outro só torna o conjunto mais rico e mais apto para tomar as melhores decisões.

Situada no universo das tecnologias de poder, a democracia, pode ser clichê dizê-lo, é como uma chama, acessa há aproximadamente 2,5 dezenas de séculos e reavivada de forma quase avassaladora há coisa de 2,5 ou 3,0 séculos. E um anti-clichê está em perceber que a sua manutenção no modo “aceso” recai fortemente sobre esses seres que estão colados à liberdade, mas tão longe de se confundirem com os políticos: os artistas. Os primeiros, levam os louros por tal “serviço” – e há de se reconhecer que alguns, de fato, o prestam, honrando a “profissão” – ; mas são os segundos aqueles que, na essência e no dia-a-dia, não se rendem ou se calam – e que deveriam, por isso, ser tratados com muito mais respeito e ser alvo de maior prestígio.

Claro, há momentos em que eles dão bola fora, como o grupo de atores globais que, há uns anos, estrelou, gratuitamente, um filme sobre a vida da deputada Flordelis (vide reportagem na revista piauí nº 172), uma suposta “santa”, hoje sob acusação de ter matado o marido. No geral, porém, o que vemos está mais próximo do ocorrido com o grupo vocal Boca Livre, recentemente dissolvido, após tantos anos, porque somente um entre os seus quatro históricos componentes aderiu às sandices do bolsonarismo, inclusive declarando que não se vacinará. Ou seja, um teto máximo de tolerância, no setor, em volta dos 25% para roubadas.

Estamos errados, como sociedade em busca de pleno exercício da democracia, no desdém que damos à cultura e aos seus principais personagens, os artistas. Essa, a lição número um que eu tiro deste nosso último semi-giro em volta do sol.

Quanto ao devido reconhecimento do bravo povo brasileiro, na figura dos quase 60 milhões de trabalhadores informais e invisíveis – esses que conseguem, não sei como, se virar com R$ 600 ou R$ 1.200 ao mês por domicílio (apinhado) –, a principal política pública é, sem dúvida, a geração de mais e melhores empregos; o que passa, necessariamente, pela iniciativa privada e pela livre-concorrência. É claro, essa é uma equação nada fácil; sabemos o quanto há de falta de escrúpulos nesse setor – mas não temos tido, infelizmente, provas reiteradas de que isso também existe, ao longo de todo o espectro político, no setor público?

Tendo ciência de que em lugar algum há supremacia beatífica, creio que o que este país precisa é apostar no seu povo. Nesses 60 milhões que, todo mês, realizam milagres. São, certamente, muito melhores administradores do que outros tantos com esse título universitário. Por outro lado, na parcela de empreendedores honestos que só não alçam voos mais altos porque não é nada fácil, em absoluto, fazer negócios perante um Estado cartorial e ineficiente, que opera à base de inconfessáveis favorecimentos e demais (e variadas) mutretas.

Ambas essas, acima, são circunstâncias que já estavam postas bem antes da pandemia, mas que saltaram à vista de maneira definitiva no seu decorrer.

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