SÓ OUVINDO
Foram somente três apresentações, das quais eu assisti à primeira. Isso foi há dez dias e só agora eu paro para falar sobre a força desse espetáculo que eu mesmo chamei de singelo e simples nos cumprimentos rendidos após a apresentação – singelo e simples, só se for no sentido de impactante e profundo que essas duas palavras também podem ter. Falo da peça “Memórias de Mim”, em que a excelente atriz Anna França, sob a direção de Miriam Virna, põe em cena histórias estritamente suas, das suas origens, da sua família do interior de Goiás – o que hoje seria, na verdade, Tocantins, como ela mesmo chama a atenção –, que passou por Anápolis e se estabeleceu, por fim, em Taguatinga, Distrito Federal. Uma família formada do encontro de uma mulher kalunga com um descendente de indígenas – não lembro se a etnia foi mencionada. Ou seja, pessoas “da terra”, vindas, ao contrário de mim e de tantos descendentes de europeus à minha volta, de lugares próximos desta capital, hoje uma metrópole.
A peça, um monólogo, mergulha na banalidade de uma conversa como tantas que ocorrem todos os dias neste Goiás, na qual alguém – a protagonista – recebe visitas – os espectadores – no interior do seu humilde lar. Memórias surgem ao sabor da cordialidade, chegando ao ponto de ouvirmos, em minúcia, a receita de um biscoito de polvilho frito, destinada a atravessar gerações (biscoito esse, aliás, que foi servido, quentinho e “divino”, na saída). Membros do clã são também trazidos, em fina descrição e reprodução dos seus trejeitos. “Casos” igualmente, de como a família lidou com esses fatos universais da vida: as incertezas sobre o futuro, a morte, mas também os encontros, a força que um indivíduo é capaz de transmitir a outro quando próximos.
Evidente que daí emerge um componente emotivo. Porém, eu acredito que não está nele o melhor lado dessa obra, e sim no tratamento que é dado a essas “memórias”, um tratamento de luxo, em que se lança mão de recursos teatrais nada triviais. Tem um momento, por exemplo, em que em vez de ser a personagem (na figura, literalmente, da atriz) que enuncia as falas – creio que é na hora da receita –, é um playback que o faz. Esse sutil efeito não tem a intenção, como de costume, de aliviar a barra de quem está em cena, mas, muito ao contrário, obriga que ela se embrenhe pelo caminho da mímica, algo que requer extrema precisão corporal. Como é que um corpo consegue dizer algo que está sendo dito por um outro? Um outro recurso, próprio de quem pensa em profundidade e experimenta com as possibilidades do teatro em sua total amplitude, ocorre quando Anna França narra a morte de sua avó, dirigindo-se para a porta de entrada da sala onde ocorre a apresentação. Ela a abre e, estando ela num ângulo no qual ninguém da plateia consegue ver o que está do outro lado (somente a própria atriz), entra uma luz na sala. Uma luz, claramente, do além, que nos induz a pensar que o mundo real – ou seja, o mundo para além da sala escura onde estamos assistindo à peça – é o mundo dos mortos – e que a nossa vida presente não é nada a não ser um breve momento.
Traduzindo, “Memórias de Mim” coloca todo um aparato (teatral e de ponta) para dar ouvidos a um tipo de fala que não é o que costuma ser mostrado em espetáculos teatrais – a não ser como algo distante ou meramente ilustrativo –: a fala do povo, das pessoas simples, que habitam este chão, o Distrito Federal e todo esse imenso Goiás que o rodeia. E eu enxergo uma tremenda genialidade nisso, conforme explico a seguir.
Eu acompanho o trabalho de Miriam Virna há algum tempo. Ela é minha amiga e, portanto, sou suspeito ao escrever a seu respeito, mas acho que também não é o caso de me calar por conta disso. Trabalhando com a nata dos atores da cidade, colega, digamos, deles, seu trabalho autoral (mas não seu estilo de direção) deu recentemente uma guinada justamente no sentido dessa audição das infinitas histórias que circulam soltas por aí, na cabeça e na memória de gente que atravessa as ruas, praças, comércios e feiras do Distrito Federal. Todo um “mar de histórias” (para ser fiel a uma peça que ela dirigiu há alguns anos em parceria com Mariza Vargas, baseada no livro Haroun e o mar de histórias, de Salman Rushdie). Me refiro ao projeto “Me Escuta”, em que ela e a sua trupe de atores encena, em lugares públicos, todo um cardápio elaborado a partir de relatos que eles colheram previamente por aí, tal como já citado. O público, em cada um desses “happenings”, é quem escolhe qual história irá ser contada, como quem chega num bar e pede seja uma cerveja, seja uma cachaça ou um petisco. “Memória de Mim” claramente é sequência desse trabalho, tendo sido dada, desta feita, atenção única e mais elaborada – do ponto de vista cenográfico – às histórias da própria atriz, Anna França.
Não conversei (ainda) com Miriam acerca desse seu último espetáculo. Não sei, portanto, se ela já se deu conta de o quanto tem se aproximado em seu trabalho desse gênio maior da literatura brasileira, João Guimarães Rosa. Por coincidência, acabo de ler um estudo primoroso sobre sua obra magna, “Grande Sertão: Veredas” (1956), de autoria do professor Willi Bolle. Esse estudo intitula-se “grandesertão.br – O romance de formação do Brasil” (2004, com 2ª edição de 2023) e é onde esse estudioso expõe o fato de que Guimarães Rosa conseguiu com esse romance – e, de resto, em seu projeto literário – nos apresentar um “retrato do Brasil” que superou todos os demais (a lista é longa dentro da tradição ensaística das ciências sociais). Principalmente, “Os Sertões” de Euclides da Cunha (o qual Bolle argumenta ser o alvo de uma reescrita por parte de Rosa em “Grande Sertão: Veredas”), justamente na medida em que encontra uma forma na qual a incomunicação entre as classes, característica deste país, é abordada e superada na figura de um mediador, que é o narrador do romance, o ex-jagunço Riobaldo. Tal qual um professor – profissão que ele também exerce na trama – esse personagem, em sua narrativa em forma de falso diálogo, traz, por vez primeira para a página impressa, “os sertanejos não como objetos, mas como sujeitos da invenção”. Na verdade, é o próprio autor que faz isso, tendo se incumbido, durante uma vida inteira, da tarefa de colecionar histórias da boca do povo e, assim, ter contato com a “oficina de linguagem do povo humilde”.
Riobaldo, esse personagem que se aproxima do seu criador, a certa altura diz ao seu interlocutor que “o sertão está em movimento o tempo todo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos”. Eu desconfio de que Miriam e os seus parceiros de teatro já se deram conta disso.
Bolle, por sua vez, assim conclui (o que também aponta para o teatro da minha amiga): “Assim como a paisagem arcaica, também a gramática aparentemente imóvel, que ‘condiciona o pensamento’ de cada indivíduo, é posta em movimento pelo estilo do escritor, isto é, pela sua maneira de ‘colaborar na feitura da língua’. Esse procedimento, que normalmente ocorre num ritmo de longa duração, é acelerado por Guimarães Rosa. Um dos principais métodos de sua invenção consiste na liberação de todas as energias formadoras da língua. Em vez de aceitar a língua ‘despedaçada em regras e palavras’, ele a trata como um ‘ser vivo’.”
