Orfeu Extático na Metrópole, de Nicolau Sevcenko

MÁQUINA VERSUS MÁQUINA

As páginas finais de Orfeu extático na metrópole, livro do historiador Nicolau Sevcenko publicado em 1992 (22 anos antes de seu falecimento precoce), são das coisas mais surpreendentes que já li. Elas encerram esse estudo sobre “sociedade e cultura” na cidade de São Paulo nos “frementes anos 20” – esse é o subtítulo da obra – do século passado, através do qual ele obteve a livre-docência na FFLCH da USP; e surpreendem não só por serem breves – pouco mais de quinze páginas (cinco das quais a título de conclusão) frente a um conjunto de pouco menos de 400 que as precedem –, mas porque enveredam para o entendimento de um fenômeno político, a Revolução de 1930, que, absolutamente, não estava no horizonte do tema até então abordado: as mudanças sociais resultantes de inovações tecnológicas e novos arranjos produtivos em curso no mundo, incluindo os nossos trópicos e, em particular, nessa metrópole surgida e consolidada em pouquíssimas décadas.

O tema do estudo está, creio eu, na ordem do dia, haja vista a elevação a insuspeitada potência, a partir da revolução digital, da tecnologia em nossas vidas– a ponto de estarmos às voltas com uma IA que aparenta querer nos escantear de vez. Percebo que há um diálogo fecundo (não efetivado) com um livro anterior a esse em duas décadas, mas que se concentrou numa única tecnologia, a fotografia: Sobre fotografia, da filósofa e ensaísta Susan Sontag. Que gigantesco poder de transformação das percepções, dos ritmos, do conhecimento em si acarretados por esses aparelhos que poderiam não passar de brinquedos – que de fato vieram ao mundo não sendo muito mais que isso!

Meu ramo não é a história – apesar de ter dedicado vários anos da minha vida ao estudo do pensamento de Michel Foucault, um filósofo que, para espanto geral dos seus colegas, recorreu a ela, chegando a “revolucioná-la”, na visão de um douto historiador e colaborador – mas assim mesmo dá para reconhecer algo de profundamente inovador nesse Orfeu extático…. Em primeiro lugar, a opção por se ater a uma cidade, bem no momento em que ela se transformava em metrópole e adquiria as feições de fenômeno irrefreável, vindo a se tornar isso que hoje todos reconhecemos como uma megalópole e centro das decisões (não só econômicas) deste país. Não sendo esse um ponto de interesse, Sevcenko não fornece a data precisa de fundação de São Paulo (1554), limitando-se, no que tange à origem, aos aspectos da localização geográfica da aldeia jesuítica inicial, uma “base catequética” no meio de uma pura floresta e seus rios que tinha, na vasta planície a oeste, condições ecológicas muito propícias para o plantio desse fruto gerador de uma toxina estimulante, o café – o qual somente no início do século XIX viria a se tornar o principal produto de exportação nacional, inicialmente a partir do Rio de Janeiro, só na década de 1870 a partir da província de São Paulo.

O surto extraordinário de crescimento de São Paulo, que a conduziu em pouquíssimo tempo à categoria da metrópole nesses anos 1920, resultou da chegada do café no interior do estado nessa década de 1870, mas também, como somos lembrados, em nível global, da Segunda Revolução Industrial, não mais dependente da energia oriunda do carvão, do ferro e do vapor, mas da eletricidade e do petróleo. Novos arranjos espaciais, comunicacionais e, principalmente, temporais, como também novos fluxos provocavam transformações nos cotidianos e espíritos, direcionando-os cada vez mais para a ação, algo de caráter coletivo (ou mobilizatório), em vez da reflexão, de cunho individual – resultando no que o autor, a certa altura, descreve como “uma sociedade e (…) um tempo em que as atenções haviam transitado da substância humana para as palpitações coletivamente excitadas dos sentidos”.

A segunda inovação que vem no bojo desse estudo é metodológica e diz respeito às fontes que o autor buscou para traçar o painel pretendido. São sobretudo obras vindas a público no âmbito daquilo que reconhecemos como cultura. Não são, em sua grande maioria, documentos ou registros desprovidos de autoria. São expressões artísticas (pintura, poesia, prosa, música) refletindo sobre o mundo à sua volta – um mundo bastante revolto e (não à toa) recém-saído de uma Grande Guerra Mundial. São profundos e extensos o uso e as análises empreendidas por Sevcenko de autores da época, não só nacionais, como alguns cronistas da imprensa local, mas também Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Villa-Lobos e, menos detidamente, todo o resto dos modernistas; igualmente, de gente como os europeus Blaise Cendrars e Stefan Zweig (que por aqui circularam), culminando, em páginas dignas de um crítico de arte e/ou literário, nos seminais Pablo Picasso e Alfred Jarry. Lendo-o, percebemos que estamos diante de um historiador sumamente versátil, que entende perfeitamente o papel da arte enquanto exercício do espírito humano para dar conta do presente. 

Trata-se, aliás, de uma atitude consciente da parte dele, como demonstra o trecho  final da conclusão em que ele traz, a partir de Sérgio Buarque de Holanda (pensador da época a quem, pelo visto, o autor tinha em alta conta), a noção de “mobilidade em aberto”, “como recurso alternativo ao apelo compulsivo da mobilização”, que a arte embute em si: “’a obra de arte não exprime nunca uma solução, mas simplesmente uma atitude. Diante de cada questão que propõe um determinado momento é sempre possível a nós tomar um ponto de vista novo.’” A máquina artística pode ser ouvida como testemunha do que acontece em determinado período – e quando esse período é um em que as máquinas se encaminham para um redesenho radical do mundo, é aí que essa primeira máquina não só pode, mas deve ser ouvida. Essa seria a grande lição desse livro sensacional.

Mas em quê consiste, precisamente, o inesperado desfecho político de Orfeu extático na metrópole? A política, recordemos, mal havia aparecido até aquela altura – no máximo, uma menção aqui e ali aos prefeitos da capital, basicamente em seus papeis de administradores. E eis que, de repente, surge na reta final da narrativa uma insurreição, a Revolta do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro (!), ocorrida em 1922. Esse levante protagonizado por alguns poucos cadetes baseados nesse Forte, ao contrário de outros anteriores (e costumeiros), terminou com a morte desses revoltosos, dando um sinal de que havia algo novo no ar. Esse algo veio dois anos depois, agora já em São Paulo, com uma significativa revolta de tropas federais que adentraram a cidade e foram de lá expulsas após 29 dias de intensos bombardeios por parte do presidente da província, que não os recepcionou em combate direto, mas optou por lhes deixar o controle momentâneo do território para poder, com suas tropas retiradas aos arredores e os aliados que logo chegaram, em seguida dizimá-los a distância, não importando se a cidade e muitos dos seus habitantes iriam junto. Havia, definitivamente, agora estava patente, uma corrente solta de sentimentos e opiniões em circulação, como que à espera de, chegado o momento, tudo galvanizar. Quando, seis anos depois, o presidente da província do Rio Grande, Getúlio Vargas, desembarca num trem cheio de correligionários na capital paulista, é recebido e aclamado por hordas de populares que saem de todos os lados, sendo ele próprio, pelo seu gestual e feições, o mais espantado com os acontecimentos. Não era ele o líder daquilo; era tão somente o veículo dessa corrente à procura de um ponto de descarga. Esse não era, ainda, o momento instaurador da Revolução de 1930 (que só se daria na não realização das eleições, dez meses depois), mas sim aquele em que, como se diz, o estrago já estava feito.

Que lição extrair disso? O que o gigantesco historiador quis afinal nos mostrar com a introdução tão tardia desses incidentes? Bem, parece-me que é algo da ordem de uma política que vai a reboque de embates que são bem mais profundos, acabando por ser mera “ritualização das fantasias e do entusiasmo coletivo”. Os tempos demandavam, a partir de sua nova configuração, ação em vez de reflexão e, na esteira, como enuncia o autor, a “entidade arcaica e regressiva” do mito. Getúlio, que não era bobo, captou isso naquele instante de êxtase e logo se transmutou, tal qual um aprendiz de feiticeiro que, diante do fogo ritual a queimar, aprende o seu ofício “observando o comportamento dos celebrantes”.

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Sobre Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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