“A Luz”, de Tom Tykwer

ENCURTANDO DISTÂNCIAS?

A Luz, filme do alemão Tom Tykwer, ainda em cartaz, tem muito a nos dizer enquanto seres da periferia do capitalismo no sentido de que é alguém que, imerso numa realidade europeia atual (que não deixa de ser a nossa na medida em que altamente perpassada pelas mídias e pelo universo digital), tem um olhar atencioso para o que está em volta. Prova disso é que, por ocasião da sua exibição há uns três meses num festival de cinema europeu aqui na capital, esse renomado cineasta, um dos meus favoritos na atualidade, esteve presente, acompanhando as quase três horas de sua duração e ficando para um bate-papo no final – mesmo que com a presença de um parco público.

O filme se passa em Berlim nos dias de hoje e retrata uma família composta por um casal e dois filhos adolescentes. Os jovens pais têm uma vida frenética a partir dos respectivos empregos, ambos ligados a questões globais: ele, como publicitário dentro do que parece ser uma multinacional que quer se apresentar como consciente das desigualdades do planeta; ela, como líder de uma ONG atuante na África em projetos que visam comunidades carentes. O casal de adolescentes, por sua vez, vive cada um em sua bolha – de e-games, ele, e de coletivo movido a drogas, festas underground e crítica social, ela. Ninguém tem tempo para ninguém nesse arranjo. O casal mais velho, reconhecendo-se em estágio terminal, recorre a uma terapia de casal; a garota engravida e realiza um aborto, nada clandestino, acompanhado pelo pai – e com total desconhecimento da mãe –; o garoto tem fobia social e raramente sai do quarto e do mundo virtual onde disputa torneios a distância. Juntos, percorrem um fio da navalha do qual não se dão conta, tão imersos que estão nas suas cavernas de Platão. Até que a corda arrebenta na forma da funcionária que cuidava da casa, que sofre um infarto fulminante enquanto faz seu serviço.

Isso os obrigou a procurarem uma nova funcionária. E o que se lhes apresentou foi uma mulher síria, da mesma idade aproximada do casal e com pouco tempo de Alemanha (porém falante fluente da língua). Essa mulher acaba sendo uma segunda protagonista do longa na medida em que, habilitada numa técnica de acesso a camadas psíquicas profundas de cada um – a qual faz uso de uma luz piscante emitida por um aparelho diante do qual se deve sentar e ficar com os olhos fechados –, paulatinamente passa a tratar de cada um dos membros. 

Não é caso de dar aqui um spoiler acerca dos motivos que, afinal, levaram essa mulher a ter escolhido a família (ao invés de ter sido escolhida por ela, como era de se esperar). A única observação que talvez caiba é a de que, além de passar a ser elemento capaz de devolver alguma harmonia a esse agrupamento disfuncional, ela introduz um componente de trama (ou mistério) ao filme: não fosse a sua presença teríamos um “simples” retrato familiar, à la Mamãe faz Cem Anos, o clássico de Carlos Saura. Ponho o “simples” entre aspas porque, para mim, esse é justamente o ponto central do filme: a indagação de se existe uma saída para essa família e, por tabela, para a grande família humana. Tirando somente de si – do seu progressismo, das suas boas intenções, da sua alta capacidade performativa (que logo se revela não tão grande assim) – tudo leva a crer que não. A periferia poderia ajudar? Tudo leva a crer que sim, mas desde que não se olhe para ela de forma inocente, ignorante dos seus próprios dramas/infortúnios.

(Na verdade, a periferia já estava presente na família berlinense de uma forma que pode passar, por vezes, desapercebida, na figura de um garoto negro, ainda uma criança, que a frequenta semana sim, semana não. Custa-se a entender quem é, pois é reconhecido como “filho” (um quinto elemento), porém tendo como pai um homem negro, que o larga apressadamente aos cuidados do quarteto, com o compromisso de vir pegá-lo logo a seguir. Descobrimos mais adiante que ele é, de fato, filho biológico da esposa do casal, fruto de um caso extraconjugal com o pai de cidadania africana – algo que só confirma a ultramodernidade da família em tela. O pai do garoto, por sua vez, é alguém que, como a empregada síria, carrega uma história, tem coisas a resolver – como qualquer um de nós, como os próprios quatro membros da problemática família europeia.)

Tudo isso me remeteu ao magistral ensaio do crítico literário Roberto Schwarz sobre Machado de Assis intitulado “Leituras em competição”, o qual li há pouco. Ele trata da recepção crítica desse escritor maior nosso no exterior em diálogo com a sua fortuna crítica local, recorrendo, a certa altura, a uma crônica desse mesmo autor, “O punhal de Martinha”, que aborda, no seu estilo sempre inventivo e ultra preciso (faz uso, segundo Schwarz, de uma “prosa clássica pastichada”), o embate entre o universal e o local – contrapondo a punhalada mortal que a interiorana personagem do título deu, conforme notícia da época, num assediador sexual, àquela por meio da qual a histórica Lucrécia, das páginas de Tito Lívio, tirou a própria vida.

Schwarz inicia abordando o fato de que a crítica local levou 60 anos para reconhecer o fato de que o narrador de Dom Casmurro, Bentinho, não é alguém fidedigno e que a sua suspeita de ter sido traído pela esposa, Capitu, nada mais é do que algo doentio que contaminou seu casamento. E o mais notável é que precisou que alguém de fora, a crítica norte-americana Helen Caldwell, para apontar, em 1960, esse viés decorrente, nas palavras de Schwarz, de uma “prerrogativa patriarcal”! O Brasil ficou discutindo – e alguns seguem nisso até hoje – por “três gerações de críticos” se Capitu havia ou não traído seu marido, sendo incapaz de se dar conta de que a palavra do narrador “não é fiável nem neutra” (nunca foi, na verdade).

Mas isso não encerra o assunto, segue Schwarz, pois dar a Machado um (justo) lugar entre os grandes da literatura universal, mostrando que, ao abordar com tanta fineza um tema como o ciúme doentio, seu Bentinho pode ser irmanado ao Otelo shakespeariano, é algo que não consegue atingir aquilo que a obra desse autor revela sobre especificidades da sociedade brasileira. Em outros termos: como que o local, sendo obviamente conformado pelo universal, ainda assim requer a profunda elucidação literária que foi por ele, Machado, mirada e atingida. Saindo da teoria e voltando à concretude do texto, isso quer dizer que Machado mostra em Dom Casmurro não só como o narrador arruinou seu casamento com alguém que lhe devotou, candidamente, confiança e, no limite, amor, mas, também como procede uma elite que, viciada em privilégios e transbordante de narcisismo, não consegue se relacionar com o que traz genuína paz e/ou felicidade – e que (ainda) está ao seu alcance. O Brasil, na pessoa de suas “famílias abastadas”, presas a uma “idealização de si”, mostra-nos a obra desse escritor, tal qual revelada por Schwarz, padece de uma incapacidade estrutural de se resolver, de dar certo. A letárgica fortuna crítica local da sua obra, como descrita acima, que o diga. Os gatos pingados que foram ver e ouvir o que, aqui na cidade pretensamente cosmopolita e certamente abastada, Tom Tykwer tinha (e ainda tem) a dizer, também.

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Sobre Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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