DE VENTO EM POPA (E AGULHA NO SULCO)
Ontem assisti ao O agente secreto, novo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, numa sessão matutina lotada, no Cine Brasília, durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro; e saí feliz da vida por ter visto algo que coroa uma trajetória cinematográfica que acompanho – e que tinha tido, a meu ver, a certa altura, um tropeço. Refiro-me a Bacarau, o qual, depois de O som ao redor e Aquarius (o primeiro dos quais permanece na minha memória como uma espécie de abalo sísmico), mergulhou de cara num maniqueísmo exagerado e quase sem possibilidade de volta.
Está certo: se formos ver, a série de ficções acima (lembrando que o longa anterior desse diretor foi o sensacional documentário Retratos fantasmas) tem, em sua composição e totalidade, esse ingrediente cuja dosagem, como uma pimenta muito forte numa comida, requer parcimônia. O cinema de Mendonça Filho é um cinema sobre o Brasil, este país desigual como poucos e, portanto, com forte presença de bandidos, mas também de gente de enorme valor, inteiros (e inteiras) mocinhos(as). É quase inevitável, dado o tema, a tensão – e aqui abro um parêntese a propósito de um outro fantástico filme brasileiro recente, O último azul, do também pernambucano Gabriel Mascaro, uma ficção que se passa num contexto distópico eminentemente brasileiro (de uma exuberante Amazônia), mas que, contrariamente, aposta todas as fichas na luta individual (e no limite do escrúpulo) de uma mulher pela sua liberdade, sob ameaça de uma legislação etarista em vigor, algo que poderia perfeitamente acontecer em qualquer arranjo político soberano moderno.
O agente secreto se passa majoritariamente no Brasil da plena ditadura militar (1977), na cidade do Recife, e tem bandidos e mocinhos que vão se delineando à medida que transcorre. Como em O som ao redor, lá pelas tantas aparecem os matadores de aluguel; como em Aquarius, há uma rede de vizinhos que se frequentam solidária e festivamente (pode-se dizer que isso também é traço presente em Bacurau). Há, também, as lendas urbanas, o ritmo, o som e até mesmo as locações recifenses, tornadas íntimas, de Retratos fantasmas. Como cereja desse bolo de familiaridades, há um ilustre ator europeu, Udo Kier (que fez o grande vilão em Bacurau), desta feita na pele de um alfaiate judeu que engana os vilões locais (uma versão do esquadrão da morte, hoje conhecidos como milicianos) se passando por ex-soldado alemão da Segunda Guerra.
Porém, voltemos ao essencial: há, como marca inscrita no inteiro corpo desse filme, como nos demais, o exercício do poder. Um poder que poderia ser brando, pois, além de valentia, há grande suavidade nos corações de muitos brasileiros – a flagrante maioria –, mas que, na verdade, é extremamente vil, até mesmo podre, como os vários cadáveres que surgem ao longo da película. Há uma ditadura, não nos esqueçamos – e o título do filme, um tanto surpreendente, não nos deixa olvidar essa guerra em curso, quando agir nas sombras é fundamental.
E, por essa via, o pensamento logo se estende para o Ainda estou aqui, de Walter Salles, o terceiro filme de sucesso internacional da temporada. Eu diria que O agente… pode ser visto como a versão nativa (e punk) desse outro filme “sobre” a ditadura. Ambos têm o grande mérito de abordá-la indiretamente: o de Salles, mostrando seus agentes, é verdade – e o gigantesco sofrimento imposto a famílias comprometidas com o bem comum –, mas não as torturas por eles perpetradas nos “porões”; Mendonça Filho, excluindo os militares das Foças Armadas, mas evidenciando como esses, na exceção característica do seu “regime”, permitiram que bandidos nas polícias estaduais e nas empresas estatais da época agissem livre e impunemente. Tanto um quanto o outro desses filmes trazem um Brasil decente e deveras grande às voltas com os escroques que por aqui costumam (ou costumavam, até quinta-feira passada, 11/09/2025) circular; com a sutil (ou talvez nem tanto) diferença de que o de Mendonça Filho parte de uma coordenada muito mais popular: ao passo que a família Paiva se entretinha ao som de Je t’aime, moi non plus, de Serge Gainsbourg e Jane Birkin, o som que ressoa no novo filme de Mendonça Filho, para além dos pífanos dos maracatus, é o ainda presente (desde Retratos fantasmas), retumbante e maravilhoso, Meu sangue ferve por você, de Sidney Magal.
