A VERDADEIRA ORIGEM DA AMEAÇA (NÓS)
Eram, para minha surpresa, pouquíssimas as referências que eu tinha sobre o clássico personagem Frankenstein – e muito provavelmente essa ignorância teria se prolongado até sabe lá quando se não fosse o cineasta mexicano Guillermo del Toro ter lançado a sua versão, em cartaz num único (!!!) cinema aqui da capital federal. O monstro com esse nome, surgido no romance homônimo escrito por Mary Shelley e publicado em 1818, há muito resvalou na cultura pop; e era assim que eu o percebia, como um alegre habitante de festas de halloween, como bobo protagonista de remakes cinematográficos ou teatrais. Obviamente, na literatura ele seguia e segue vivíssimo, não só pelo nobre parentesco com o mito no qual se baseia – sendo seu subtítulo “Ou o Prometeu moderno” – e por ser um dos precursores da ficção científica, como pela própria qualidade de sua escrita (fato esse que ainda pretendo atestar).
Adentrando com algum esforço, pela via da memória, um pouco mais fundo no raso baú dos meus conhecimentos da obra, agrego tratar-se de um monstro fruto de uma experiência científica que, uma vez parido, sai do controle de seu criador e se torna um problema, possuidor que é de uma força física descomunal. Nessa toada, insisto, sem o filme de del Toro, meu interesse pelo personagem jamais teria saído do (quase não)-lugar. Foi o interesse dele, del Toro, que me despertou, haja vista o sensacional A forma da água, seu filme anterior – e, no fundo, toda uma filmografia em que monstros dão as caras, em que o cineasta se permite delirar através deles (lembremos do belo O labirinto do Fauno). Frankenstein, somado a esse histórico, corria o risco de ser um pouco de “mais do mesmo”. Só que não; até pelo fato de que, em nosso imaginário, como acima exposto, ele já existe, é quase um habitué. O que há de novo no pensamento desse diretor nessa sua versão da clássica história? Por que ele, reconhecido criador de monstros memoráveis, resolveu recorrer a esse, tão “batido”?
Antes de responder a essas perguntas creio que é preciso falar um pouco mais da natureza dos monstros toronianos. Eles são puros de sentimento, detêm toda uma ressonância romântica de bom selvagem e nos mostram o quanto, no fundo, é a sociedade, nós, aquilo a ser temido – o quanto os sinais estão trocados. Mary Shelley fez parte do movimento romântico em sua terra natal, a Inglaterra, integrou os círculos mais exclusivos dessa corrente de pensamento por lá; e Del Toro, um romântico atual, foi, desta feita, beber na fonte. Se um olhar crítico do poder da ciência e da tecnologia já estava presente em A forma da água – com todo o aparato militar voltado para a contenção e, no limite, dissecação desse novo ser que surge na selva amazônica –, agora temos o cientista que ressuscita os mortos (ou partes deles) e cria um ser indestrutível, não só pela sua força quanto pela sua capacidade regenerativa. O solo de interrogações – ou a episteme, se quisermos – de del Toro é estritamente a mesma (e é romântica).
Pois bem, e não poderíamos dar a essa exploração filosófica através do cinema o caráter de uma fórmula? Uma fórmula de fazer dinheiro, ou, em todo caso, de prolongar algum tipo de sucesso? Alguns talvez hão de ver dessa forma (quem sabe isso explique a pecaminosa falta de programação, aqui, em diversas salas de cinema tidas como alternativas). Eu em particular acho que não. Há uma urgência nesse apelo à origem, à matriz. A ida de del Toro a Frankenstein tem, a meu ver, a feição de uma união de forças frente a algo que hoje aí está, hiperpresente à nossa volta (nas salas de aula, nas redes, consultórios, palestras e nos debates públicos e privados): a inteligência artificial. Convém ouvir o que ele tem a dizer através, claro, das suas imagens em movimento.
Victor Frankenstein, o cientista criador do monstro – ou será melhor chamá-lo de robô? – é alguém que não mede esforços para ultrapassar a barreira da morte. Antes mesmo de atingir seu objetivo, é confrontado pela personagem de sua futura cunhada, Elizabeth – por quem ele se apaixona –, sobre a responsabilidade de parir algo dessa natureza sem antes ter desenvolvido a capacidade de escutar suas possíveis angústias, de aceitá-lo como interlocutor válido. E uma vez parido e, graças a um mestre/amigo que a certa altura atravessa seu caminho, instruído e ciente de sua identidade, é o próprio Frankenstein quem lhe apresenta um questionamento similar. É tremenda a atualidade desse filme.
Há grande narcisismo na ciência e no mundo tomado pela tecnologia dos dias atuais, algo que possivelmente os românticos do século XIX já começavam a se dar conta e a querer postular um contraponto, gestar um antídoto. Frankenstein fecha com uma citação de Lord Byron que se refere ao coração (esse que pulsa enquanto vida há): “e o coração irá se partir, mas partidamente ele irá adiante”. Refletindo acerca disso, penso que essa criatura, Frankenstein, pode essencialmente ser definido como um coração a mais que veio ao mundo; porém, de cara, já todo partido (não é, por acaso, intrinsecamente feito de pedaços?). Deu trabalho, mas ele se achou.
Somos, na verdade, todos um pouco Frankenstein desde o momento em que nos damos conta que, diferente das condições intrauterinas, o mundo aqui fora não responde, via de regra e de forma imediata, aos nossos múltiplos e sempre urgentes anseios (gerando as tais das feridas narcísicas). Precisamos saber ouvir, a fundo, o outro à nossa volta, certamente tão alquebrado quanto nós. Aceitar isso na medida em que caminhamos, em que seguimos adiante, parece ser o grande segredo – e o mais potente antídoto a essa criação que ora nos ameaça enquanto espécie.
