FOUCAULT E EU
Para Paula
Entre 2008 (quando se deu a defesa da tese) e 2010 (a publicação do livro), tiro uma média e decreto que lá se vão 15 anos desde que veio ao mundo esse meu trabalho. Estou relendo-o e me deparo com um misto de espanto e vergonha. Espanto pelo que dei conta de realizar: a interpretação de um legado de pensamento de enorme impacto planetário que, naquele momento, tanto quanto nos anos seguintes, foi bem mal compreendido. Explicarei isso a seguir, não sem antes esclarecer a vergonha a que me referi.
Vergonha pela escrita. Percebo que não é meu forte. Gostaria muito que fosse: ter a calma suficiente para cadenciar o texto, evitando as sentenças gigantescas, cheias de travessões e vírgulas que mais confundem e dificultam do que ajudam o leitor. Esse é um problema com o qual até hoje me deparo em tudo que escrevo e que passa, penso eu, por um desconhecimento de quem seja meu leitor. Naquele momento era para ter tido alguém que me lesse – supostamente o meu orientador – algo que não se deu. Teria ajudado enormemente.
Mas voltando ao lado luminoso, noto que é o pensamento mesmo o que me salva. Primeiro, uma capacidade de olhar para um todo bastante complexo e achar um meio de ordená-lo. Em seguida, eu diria que o traço da fidelidade ao que está dito e escrito: eu elegi o Foucault quase como se elege um amigo (ou melhor, como dizem, os amigos não se elegem, eles se reconhecem) – e um amigo é alguém que não se trai.
O tema da liberdade em seu pensamento, é preciso dizer, surgiu tardiamente. Foi deveras o seu ponto de chegada. Um ponto de chegada glorioso, por sinal, já que, como ele mesmo afirmou, esse é o assunto chave da filosofia. Mas se você o trouxesse perante ele ao longo de, digamos, oitenta por cento de tudo que ele escreveu e publicou, você o veria, com toda certeza, torcer o nariz.
De cara e durante boa parte da sua trajetória, Foucault se empenhou em entender o funcionamento dos saberes sobre “coisas” como a loucura, a saúde/doença ou o homem; e o grande diferencial do uso desse conceito (de saberes) foi o fato de que, nele, não está em jogo um sujeito fixo, que “realiza” o conhecimento. Ao conhecer, conforme rezava o senso comum filosófico (e bíblico), esse sujeito dito “do conhecimento” galgaria degraus em sua liberdade (o velho “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”). Pois bem, ao tratar de saberes em vez de conhecimento ele abandonava toda e qualquer perspectiva de liberdade: naqueles, o sujeito, no próprio ato de perseguir um conhecimento, se transforma; ele não tem estatuto autônomo que lhe permita essa elevação, está sempre imerso e na dependência dos demais elementos do jogo de verdade do qual participa.
Ocorre que essa forma de olhar, de início cunhada por ele como arqueológica, pode também ser aplicada às instituições modernas, resultantes da política, como as prisões e o próprio Estado, bastando para isso que se tenha em mente que nada que seja da ordem do discurso (isto é, dos saberes uma vez postos em prática) escapa à busca do poder: a origem de tudo é sempre baixa – e não há o que se lamentar quanto a isso, basta não nos iludirmos. Foucault abraça o método genealógico de Nietzsche quase sem restrições e passa a praticar a genealogia do poder.
Porém, haver entrado nessa seara o levou, a certa altura, a sair do seu método de trabalho próprio, que havia sempre sido o de levantar, na história, as formas como, enquanto sujeitos, nos relacionamos com a verdade vigente. Por instantes, ele achou que teria encontrado, no conceito de biopolítica, algo próximo de uma verdade dentro do velho estilo do conhecer, ou seja, algo que escapasse do que é contingente e entrasse na ordem do eterno, valido para toda e qualquer situação. Esse surto durou um pouco mais de dois anos e foi em parte alimentado pelas exigências da instituição, o Collège de France, na qual havia começado a trabalhar havia uns cinco. Chegou mesmo a dar o nome de “Nascimento da biopolítica” a um desses cursos anuais, mas o fato é que nunca cumpriu o que prometeu: foi sempre adiando, mediante desculpas, a entrada no assunto, até que o abandonou de vez.
E o motivo para tal foi justamente que um outro conceito apareceu no meio do caminho, permitindo que finalmente se vinculasse ao tema da liberdade, tão abominado por ele durante a juventude – só que por uma via inteiramente diferente. Esse conceito é o de governamentalidade, o qual aprofunda a pesquisa em torno do exercício dos micropoderes da sua fase genealógica. Através dele, se dá conta que o próprio Estado moderno, girando em torno do direito, não é, como tudo leva a crer e desde o seu nascimento, o que concentra o cerne do poder. Ele pode ser visto como uma simples “peripécia” de uma tecnologia bem mais antiga que é a arte da condução das condutas (a própria definição de governamentalidade), dentro das relações perenes que ocorrem entre governantes e governados.
Verdades são também jogadas nessas relações, funcionando como armas. Isso permite ao analista seguir olhando para as relações que os sujeitos mantêm com elas; mas o grande diferencial está em que essa relação assume um caráter agônico, de luta, de “incitação recíproca” ou de “provocação permanente” – não mais de necessidade – entre liberdades. Diz Foucault a esse respeito:
“São indivíduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para tanto, eles dispõem de certos instrumentos para governar os outros. Isso repousa, portanto, bem sobre a liberdade, sobre a relação de si a si e a relação com o outro” (p. 72 do meu livro, tradução livre de uma entrevista que ele deu já bem perto do final da vida, intitulada “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”).
E, não menos importante, nesse momento ele também se desvencilha desse posto que o biopoder lhe dava, o de teórico do poder: algo que ele esclarece jamais ter sido ou querido ser (“eu não sou de modo algum um teórico do poder”, são suas exatas palavras, numa entrevista que contém uma análise retrospectiva de sua obra). Entender a fundo essa afirmação desconcertante – e tudo o que levou a ela dentro dessa recolocação do tema da liberdade – é uma das principais contribuições que eu creio ter dado com esse meu trabalho.
Mas uma vez que você afirma algo num campo específico do saber – como era o caso dessa tese de doutorado em Ética e Filosofia Política – você tem que responder a dúvidas que o próprio campo irá, naturalmente, levantar. Há uma esperada reação por parte dele e isso (ao menos na teoria) é o que dá sentido e saúde ao fazer acadêmico. Na releitura que faço, vejo que eu não me furtei a enfrentar essa reação.
No caso, eram dois os pontos que identifiquei e tratei de responder. O primeiro diz respeito à própria teoria do Estado de direito, que se constitui como o arranjo moderno da necessária relação perene, como disse acima, entre governantes e governados. Nessa teoria, que também é a que diz respeito à soberania, há uma ênfase da questão da liberdade, cuja carga passa a estar não mais no Estado (enquanto ser coletivo), mas nos indivíduos: é a existência de um pacto, em que esses abdicam de uma parte de sua liberdade em favor de uma soberania, aquilo que, paradoxalmente, lhes garantirá o usufruto de direitos que configuram uma liberdade inédita, a liberdade dita do cidadão (e os direitos que passa a possuir, ditos humanos). Quem está à frente dessa teoria, como se sabe, é Thomas Hobbes, pensador do século XVII. Foucault, com aquilo que postula, conforme visto acima, acerca da liberdade e do Estado moderno, vai pisar, precisamente (porém não nominalmente), nos seus calos; e esse fato demandava, de minha parte, uma saída.
Saída essa que eu encontrei na leitura do esclarecedor livro de Quentin Skinner, Liberdade antes do liberalismo, na qual ele expõe a teoria chamada neo-romana sobre a liberdade. Teoria essa que não nega os benefícios, para o indivíduo, da teoria da soberania, mas que discorda do seu postulado de que a forma do exercício dessa soberania não é algo que importe. Pode-se viver em liberdade, afirma Hobbes, tanto sob uma ditadura (a do “sultão de Constantinopla”) quanto sob uma democracia (a “república autogovernante de Lucca”): uma vez que o papel do soberano, de garantir que exista um espaço de liberdade do cidadão, esteja sendo cumprido, o resto dirá somente respeito à extensão da liberdade que daí surge (veja-se o quanto isso diz respeito à legitimação de um liberalismo à la ditadores como Pinochet ou Bolsonaro). Os teóricos neo-romanos trazidos por Skinner irão, como Foucault séculos depois, advogar que para que esses cidadãos possam ser de fato livres, o Estado do qual fazem parte necessita também ser livre, isto é: não se é plenamente livre quando se vive na dependência de alguém que tudo pode, que tem carta-branca, que não tem que dar respostas satisfatórias sobre as suas ações.
Recolocar a liberdade em termos da relação direta entre governantes e governados, fugindo, assim da teoria do Estado, tal como estava propondo Foucault, não era, portanto, algo assim tão saído do nada. Era algo que estava lastreado por uma tradição de pensamento estritamente político – mesmo que Foucault em momento algum cite os teóricos neo-romanos. E tudo isso acrescido do detalhe não trivial de que esses teóricos vieram um pouco antes – e não depois – de Hobbes na história do pensamento.
O segundo ponto passível de levantar questionamentos residia no papel normalmente atribuído à política, de ser mediadora de conflitos e fonte primordial de consensos. Duas vertentes da filosofia política naquele momento – anos 1980 –, tanto quanto vinte e tantos anos depois (momento de em que defendi a tese), estavam em voga e empenhadas em encontrar modelos de exercício da política que conseguissem anular todo e qualquer fator de força e/ou dominação que pudesse se estabelecer nesse âmbito, instaurando algo da ordem de uma “verdadeira política”. Ambas essas vertentes eram oriundas da Alemanha, e quem respondia por elas eram, em ordem cronológica, Hannah Arendt e Jürgen Habermas.
Foucault é indagado se essa sua forma de ver tudo sob o prisma das relações agônicas entre governantes e governados, sem a necessidade de uma mediação de algo como a sociedade civil (com a qual contam tanto Arendt quanto Habermas, e que para Foucault é uma “realidade transacional” que, assim como a loucura ou a sexualidade, faz parte de uma tecnologia governamental), não estaria indo na direção de uma antipolítica. Ele responde que é utópico tentar descartar as relações de poder e que o importante é que essas, mais do que pretensamente eliminadas, estejam sujeitas a uma crítica permanente:
“perguntar-se qual é a parte de não-consensualidade que está implicada numa tal relação de poder, e se essa parte de não-consensualidade é necessária ou não, e então poder interrogar toda relação de poder dentro dessa medida. Eu diria, no limite, não é necessário ser favorável à consensualidade, mas é necessário ser contra a não-consensualidade” (p. 93 do livro, em tradução livre de entrevista dada também próximo de morrer, intitulada “Política e ética: uma entrevista”).
A essa altura da tese eu já estava prestes a adentrar o lado menos espinhoso dessa trajetória filosófica, que ocorreu quando Foucault finalmente decidiu deixar de lado a modernidade e se dedicar àquilo que a Grécia antiga e o helenismo que a sucedeu haviam especulado em torno da liberdade nas relações e a essa arte de conduzir os outros e de conduzir a si mesmo. Aí já se tratava dele perseguindo sem freios o tema em si da tese, a liberdade, de modo a encontrar respostas que repercutissem no presente – e, por sinal, foi algo que eu fiz na última parte do trabalho, relacionando essas descobertas a outros dois desenvolvimentos do saber que eu então acompanhava em paralelo: a psicanálise lacaniana, sob o ângulo da “segunda clínica”, e a descoberta do perspectivismo ameríndio pela etnografia brasileira. (É necessário dizer que, a despeito da sua morte precoce, por Aids, em 1984, Foucault terminou seus dias filosoficamente realizado, tendo cumprido, espantosamente, aquilo a que se propôs desde o primeiro instante; e a minha tese não termina de outra maneira, com um, digamos, final feliz, um abraço otimista e cheio de esperança).
Mas havia ainda um ponto a ser coberto e que diz respeito a Kant e ao Iluminismo, ponto esse que estabelece uma espécie de garantia, ou salvo-conduto, para ele ir atrás dos gregos – em particular, conectar-se com Platão. Ao contrário toda uma corrente esclarecedora, dentre os quais estão filósofos iluministas do século XVIII e, posteriormente, os alemães Dilthey e Habermas, Foucault não parte da aposta numa depuração do conhecimento ou num inquérito sobre os limites da razão e sim da atitude que ele chama de “crítica” para entender as possibilidades dessa grande empreitada que irá definir a modernidade. Kant havia escrito suas três críticas e mais esse pequeno artigo em resposta à pergunta, de um jornal da época, “O que é o Iluminismo?” (ou Esclarecimento), e Foucault vai detectar aí uma defasagem entre crítica e Esclarecimento, ainda que ambos fizessem parte do mesmo projeto.
Ele entendeu que, para esse pensador essencial, as três críticas eram “de certa forma, o manual de instruções da razão que se torna maior de idade no Esclarecimento; e, inversamente, o Esclarecimento é a era da Crítica”. O Esclarecimento de Kant, para Foucault, é a atitude crítica que ele havia recém vislumbrado como o antídoto a toda condução de condutas. Mais uma questão (um tanto “ridícula”, ele reconhece) de “pregação”, de “apelo à coragem (em todo caso)”, diz ele, do que qualquer outra coisa. A ênfase estava nisso, não nas três sacrossantas críticas. Em outras palavras, no limiar da modernidade, Kant havia percebido a governamentalidade: era um inesperado aliado para tudo o que Foucault havia formulado até então (o ano decisivo de 1978) – e para o que estava por vir.
No ano de sua morte, Foucault publicou os dois últimos volumes – de um total de três – da História da sexualidade, que tratam exclusivamente da moral sexual na Grécia antiga e no período subsequente. Esses dois livros resultam das suas pesquisas a partir da virada, acima descrita, ocorrida entre 1978 e 1979, as quais estão registradas, em seus mínimos detalhes, nos cursos se seguiu proferindo no Collège de France até o ano de 1983. O que surge nesses cursos – e logo se cristaliza nos dois livros – é a descoberta da preocupação existente naquele contexto com a construção de um sujeito capaz de conduzir a si mesmo, em vez de ser conduzido. Esse “si” inscrito na prática – que dá nome ao terceiro volume e que foi algo que perdurou durante quase mil anos – do “cuidado de si”. Tal sujeito não era em absoluto um sujeito do conhecimento, não se definia a partir disso, mas da sua capacidade de fazer uso das coisas à sua volta, ao invés de ser escravo delas; os prazeres, por exemplo.
A moral sexual (mormente para as classes dirigentes) que é descrita nesses dois volumes, construção coletiva marcada por uma austeridade, em nada se aproxima da ideia cristã, posterior, de pecado. Antes, tem a ver com o reconhecimento do sexo como uma força da natureza de tal poderio que qualquer um pode a ela facilmente se assujeitar. É algo perante o que o “si”, que se quer condutor, dono da situação, corre um sério risco; daí a necessidade de se elaborar toda uma reflexão, focada em práticas – uma ética, em suma –, a respeito. Perante elementos assim tão fortes, que põem em risco a própria liberdade do sujeito, estratégias precisam ser criadas. Isso não é nada tão distante da luta moderna dos indivíduos face às disciplinas, às instituições, aos saberes (esses jogos de verdade) e ao próprio Estado que querem a todo custo a sua anulação.
Dentre os que, contemporâneos a ele ou não, caminharam junto com Foucault e tentaram entender o seu legado, aquele que foi mais longe, a meu ver, foi o historiador Paul Veyne, que lançou Foucault, o seu pensamento, a sua pessoa em 2008 (pouco depois de eu ter defendido a minha tese). A certa altura desse livro, ele sintetiza toda a sua filosofia como um esforço em prol de um “decisionismo individual”, algo que eu assinaria embaixo – e, obviamente, teria usado no meu trabalho. Mas eu não gostaria de terminar este texto, que partiu da releitura, quinze anos depois, daquilo que eu realizei, sem uma nota pessoal no sentido de que, ao longo dela, me dei conta de que aquele para quem escrevi essa tese era ninguém menos que eu mesmo. (Fato esse que atenua a sua já mencionada falta de estilo e/ou elegância, pois, como dizem, toda boa escrita é aquela que visa a ninguém mais do que ao seu próprio autor.)
E em nota ainda mais pessoal, fechar dizendo que dentre todas as belíssimas citações que lá fiz dessa monumental obra, a mais bela – e que também sintetiza muita coisa acerca da recalcitrância da liberdade na acepção desse filósofo – é uma que se encontra numa anotação de rodapé e traz um trecho do texto “A vida dos homens infames”, de 1977. No corpo do texto, eu falava sobre a possibilidade de passar a enxergar a política e o direito sob a grade de leitura das relações imediatas entre governantes e governados mencionando que era isso o que interessava a Foucault. A nota abre um parêntese sobre a literatura, que também é um campo onde essas relações aparecem (e igualmente lhe interessava, portanto). É a partir disso que eu então entro com esse texto dele que deveria ter sido a apresentação para um livro que iria fazer em conjunto com a historiadora Arlette Farge a partir de registros administrativos sobre o Hospital Geral da Bastilha, com os quais ambos tinham trabalhado. Esse livro não saiu, mas a introdução sim; e nela, ele declara que essas vidas obscuras que lá aparecem, “existências que são destinadas a passar sem deixar traço algum”, balançaram nele “mais fibras do que aquilo que ordinariamente chamamos literatura” e que, ao escolhê-las, teria se pautado pelo fato de que
“houvesse nas suas infelicidades, nas suas paixões, nos seus amores e nos seus rancores qualquer coisa de cinza e de ordinária aos olhos daquilo que se tem habitualmente como digno de ser contado; que entretanto elas tenham sido atravessadas por um certo ardor, que tenham sido animadas por uma violência, uma energia, um excesso na infelicidade, pela vilania, pela baixaria, pela teima ou pela infelicidade que lhes davam aos olhos daqueles em volta, e à proporção mesmo da sua mediocridade, uma espécie de grandeza assustadora ou lamentável. Eu parti à busca dessas espécies de partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto elas são tanto menores e difíceis de discernir.” (p. 86 do livro, em tradução livre).
