Dias Perfeitos, de Wim Wenders

MY WAY

Em seu fantástico livro “Raízes do Romantismo” (Fósforo, 2022), que reúne uma série de conferências proferidas em 1965, o grande teórico Isaiah Berlin se pergunta se o movimento romântico que surgiu na Europa no século XVIII teria tido alguma influência na Revolução Francesa de 1789. A princípio, diz ele, não, já que essa ocorreu, conforme o senso comum, sob o signo do Iluminismo e sua crença absoluta no poder da razão. Nada teria a ver com a fé na singularidade, no gênio e na vontade autorrealizadora que situavam esse também jovem movimento no canto oposto do ringue. Um pressuposto seu, de que o mundo não tem uma ordem predeterminada, de que ele é, na verdade, caótico e informe, bate de frente com a busca iluminista de uma harmonia universal. O melhor resumo disso está quando ele traz Schopenhauer, para quem o homem é

“um ser atirado em uma frágil casca de árvore no vasto oceano da vontade, que não tem nenhum propósito, nem fim, nem direção, e ao qual o homem só pode resistir por sua conta e risco, com o qual o homem só pode chegar a um acordo se conseguir se livrar desse desejo desnecessário de ordenar, de se organizar, de criar um lar aconchegante para si nesse elemento indomável e imprevisível.”

Como corolário dessa percepção está a noção de que o conflito é algo inevitável, de que deve-se assumi-lo como parte integrante das relações humanas: há uma incompatibilidade no que diz respeito a valores; e isso não é algo a se lamentar. O que importa, no fundo, não é quem tem razão, mas a forma como cada um irá defender aquilo em que acredita. Um respeito poderá (e haverá) de nascer disso. Ao contrário da perspectiva universalista que prega a não coexistência de visões de mundo – e, portanto, em nome de uma pretensa harmonia a ser alcançada, acaba, paradoxalmente, gerando  e legitimando guerras – o romantismo teria chegado com a ideia de que está tudo bem que o outro pense diferente: da assunção de uma natureza conflitiva inerente surge a possibilidade de uma convivência pacífica, mediada pelo reconhecimento do outro enquanto vontade autorrealizadora.

O resgate dessas reflexões me veio a partir de Dias Perfeitos, o mais recente filme de Wim Wenders, ainda em cartaz nos cinemas. O filme trata de um senhor de meio idade, Hirayama, residente e (supostamente) natural de Tóquio, que ganha o seu sustento lavando banheiros públicos espalhados por essa metrópole. Todo dia ele sai de sua pequena habitação, onde vive só, e realiza seu trabalho em parceria com um(a) ajudante, não sem ter os seus momentos de contemplação e de distração. É alguém de bem com a vida, que não necessita de muita coisa – nem mesmo de muita conversa com os demais à sua volta – tendo em vista os livros e as fitas cassete dos quais se cerca e usufrui. 

O filme acompanha a sua rotina e me lembrou – e levou a rever – o Simplesmente Feliz (2008), do diretor inglês Mike Leigh, com a divina Sally Hawkins, que retrata uma professora do ensino infantil na Londres atual. São filmes muito próximos, a despeito de esse outro personagem ser extremamente comunicativa, talvez até em excesso: o seu instrutor de autoescola, travado e maníaco, por exemplo, não suporta o seu estilo sempre “pra cima”, único (apesar de acabar se apaixonando por ela). As aparências, contudo, enganam. Cabe reparar que a vivaz Poppy é alguém que conhece bastante o mundo, tendo passado e dado aulas em países do Oriente, por exemplo. É também alguém que não se priva de estar com os miseráveis da própria cidade onde vive, como na cena em que tenta dialogar com um morador de rua, sucumbido à loucura.

A história de Hirayama vai aos poucos sendo revelada em Dias Perfeitos. Trata-se de alguém que abandonou um estilo de vida. Abandonou – no sentido de ter cortado a comunicação – uma família de expectativas altas e, aparentemente, posses. Abandonou, ao que tudo indica, uma carreira nas letras ou, como dizer, no conhecimento – ainda que não tenha largado nem uma, nem outro. É alguém que se ressituou, estabeleceu limites e conseguiu encontrar um equilíbrio único, muito possivelmente se mantendo fiel a seus próprios valores: aqueles presentes nas músicas e nos livros, boa parte dos quais estrangeiros. Poppy é também alguém que não se entende com uma das suas irmãs, adepta de valores tradicionais (mesmo que de classe média, ou trabalhadora). Ambos são seres que encontraram dentro de si uma força singular e suficiente para se manter no mundo e serem felizes. Felizes, ao seu modo.

O que, após ver Dias Perfeitos, me remeteu ao livro de Berlin mencionado no começo foi quase uma intuição: a de que Wenders é, no fundo, um pensador/realizador romântico. Não pretendo aqui elaborar nada muito extenso a esse respeito, porventura resgatando a sua extensa filmografia. Revi, há pouco, Asas do Desejo e me parece que há uma forte dose de romantismo nesse filme. Tendo relido Berlin, agora me parece que está tudo muito evidente. 

O romantismo nasceu, como advoga esse autor, na Alemanha. Essa seria uma primeira ligação, mas, sem dúvida, inteiramente insuficiente. O elemento chave, definitivo, está na cena em que Hirayama anda de bicicleta com a sua sobrinha, a qual havia fugido de casa e se hospedado em sua casa por alguns dias. Ela lhe indaga sobre os motivos do seu rompimento com a irmã, a mãe dela (de resto, como fica claro depois, com o patriarca da família). O tio então lhe explica que o mundo não é uma coisa só, mas sim vários. Existem diversos mundos, os quais não precisam se misturar; um pode olhar para o outro e reconhecê-lo sem a necessidade de dele se apoderar ou o converter.

Como fica claro a esta altura, o romantismo é pacifista – e Wenders, ao falar de Hirayama, reconhece esse traço como o mais presente não só nesse personagem, mas dentre todos os que ele já criou. O que não significa, de maneira alguma, que não haja nele, romantismo, um gigantesco potencial revolucionário, uma força tremenda. Acho que esse é totalmente o ponto que Berlin quis mostrar quando levantou o tema da relação desse movimento com a Revolução Francesa. E, quando vemos filmes românticos em seu sentido pleno e mais profundo, feito os dois que acabo de comentar, é como se dentro de nós algumas Bastilhas tombassem.

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
Esta entrada foi publicada em Filmes, Ideias e condutas e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário