DE CAPITÃO A CORONEL
José Padilha irrompeu a cena pública com o seu Tropa de Elite há coisa de uns três anos. Foi um bafafá danado – e não só por conta das cópias piratas que vazaram antes do lançamento do filme –; a obra incomodava ao nos colocar em meio ao debate candente sobre o Rio de Janeiro e a sua geopolítica, apresentando um anti-herói, o Capitão Nascimento, policial do BOPE, com um discurso fascista, mas que tinha lá um certo quê de razão! Também, o discurso dos direitos humanos, esse a que a maioria de nós nos apegamos, recebia uma boa chamuscada, aparecendo como um blá-blá-blá conveniente, na medida em que as dimensões do buraco carioca se descortinavam. Onde está a razão, quando o dia-a-dia dos agentes de segurança do Estado é mostrado no imediatismo do agir, no curtíssimo espaço de tempo que transcorre entre o puxar um gatilho ou não? O filme de Padilha balançou a muitos.
Agora, temos a continuação, que inicia com um flashback para o começo da trajetória que levou Nascimento, já coronel, ao cargo de chefe da inteligência da Secretaria de Segurança do Estado. O drama é o mesmo: atira-se ou não, numa rebelião de presos de segurança máxima, numa situação que já estava “sob controle”? A razão diz não, mas o sangue que ferve é o do policial BOPE que, sim, foi treinado, etc., etc., mas que acaba por fazer besteira. De novo, temos o drama de Nascimento, que, assim como na versão primeira, é o narrador do filme: ser ou não ser? O BOPE e a sua caveirice é mesmo uma saída?
Sim, diz Nascimento; e a sua ascensão por linhas tortas se lhe apresenta como a oportunidade para fortalecer essa corporação da qual ele extrai a sua identidade. Mas eis que a realidade, agora, também, se lhe apresenta com toda a sua crueza, o big picture resolve cair da parede e na cabeça de Nascimento, sob a forma das milícias, compostas por elementos que são parentes próximos, primos ou irmãos do valente e, até então, (candidato a) salvador, BOPE. A família segurança, descobre ele, não presta e o próprio Estado se revela tão ou mais nocivo que os bandidos a serem combatidos, tornando evidente uma desconfiança que o primeiro Tropa já suscitara em mim: trata-se de “Tropa de elite” ou de “Tropa da elite”?
A queda na real do coronel é brutal e talvez fosse fatal se não existisse um outro fator novo nesta sequência: a existência de um político sério. Herdeiro do foucaultismo que já aparecia no primeiro Tropa, temos agora um professor universitário que “cola” em Nascimento por vias paralelas (é o padrasto do seu filho) e que, como ele, recebe uma “promoção”, só que a deputado estadual. É, no início, uma espécie de sombra do nosso capitão, aparece-lhe, como se diz, “até na sopa”. Mas eis que essa sombra chata, essa antítese do nosso já familiar anti-herói, acaba por ter um papel de tábua de salvação.
Tropa de Elite 2 é um show de cinema, como já escreveu Gustavo Dahl numa crítica na Folha de São Paulo – ele disse, mais precisamente, que o filme “salva o cinema brasileiro da irrelevância”, e eu tendo a concordar com ele –, mas isso se deve não somente ao seu apuro técnico, ao seu acerto nos diálogos, no ritmo, nas escolhas dos planos, dos atores, etc.: se deve, também, ao reconhecimento de que há – ou pode haver – vida decente, ainda que mínima, em meio à política. Essa é uma constatação fundamental, que a pressa das maiorias, dos que se vêem eternamente como injustiçados, tende a escamotear.
É tão fácil condenar, jogar a todo e qualquer um que entra no jogo da representação dos interesses coletivos na vala comum da indecência e da esperteza… Como se não houvesse matizes e como se não fôssemos, todos, humanos, às vezes, aqui e acolá, sujeitos a pequenos deslizes, a ceder a pequenas tentações. Requer-se dos políticos a perfeição que ninguém, por sua vez, é capaz de suportar para si mesmo, de ver implantada em sua própria vida. E o que é que acaba acontecendo com essa presunção irrestrita de culpa? Que quando surge alguém realmente sério, capaz, puro, em suma, alguém bom, isso passa desapercebido, em meio a brancas (ou pretas) nuvens, o que só beneficia aos políticos corruptos.
Um amigo meu que morou um tempo no exterior e que gosta de cinema se espanta e se chateia com o fato de o cinema brasileiro só tratar, na sua visão, do tema violência. Não tenho muito o quê contra-argumentar, a não ser o fato de que a questão, o incômodo, talvez não seja tanto o excesso de violência, mas a falta de heróis no nosso cinema. Talvez, um cinema sem heróis seja, de fato, um cinema irrelevante – e eis que Padilha, depois de ter buscado, feito um espermatozóide, desesperada e infrutíferamente, por um, no primeiro filme, conseguiu uma dupla fecundação, neste segundo.
Meu maigo e compadre. Fiquei com medo de ver o primeiro só de ouvir o que favam. Agora tenho que ver os dois para entender essa “vida decente em meio à política”. Abraço e parabéns pela crônica.