O “HC” A SER REGULAMENTADO COMEÇA COM “T” OU COM “F”?
Minha primeira reação ao saber sobre o último filme de Fernando Grostein de Andrade, Quebrando o tabu, sobre o périplo de Fernando Henrique Cardoso no mundo, a favor da descriminalização da maconha, foi a de dizer: taí um filme do qual quero distância. Não, em absoluto, pelo tema, nem pelo diretor (que tem um belo documentário sobre uma turnê internacional de Caetano Veloso, Coração vagabundo), mas pelo próprio FHC, uma figura de que nunca gostei enquanto ele era presidente e depois, quando virou “ex” (como intelectual eu nem falo, porque confesso que nunca tive o interesse de ler qualquer dos seus livros, ainda que tenham feito parte do currículo do curso em que me formei e fiz meu mestrado, o curso de sociologia). Com o tempo, porém, confesso que fiquei curioso e quando essa curiosidade chegou no ponto de me decidir a ver o filme, ele já tinha saído de cartaz, o que me deixou no aguardo do seu lançamento em DVD.
Mas, acontece que uma enxurrada de reportagens e entrevistas, na mídia, com o “âncora” do filme, praticamente me deu uma idéia do que deva ser esse documentário. E acontece, também, que toda essa volta de FHC ao centro das atenções, com filme ou sem filme, despertou em mim a necessidade de refletir a respeito dessa figura que acaba de completar 80 anos de vida, e a respeito da minha antipatia para com ela. No fundo, eu tinha uma certa esperança de ver alguma mudança, algo de novo no seu modo de pensar e de proceder, decorrente da sua idade já provecta, mas tudo leva a crer que não seja isso o que se passa.
Quando FHC assumiu a presidência, eu já tinha seis anos de formado, dois de mestre em sociologia e menos de um ano de serviço público na CLDF, como sociólogo. É claro que, a essa altura, minha crise com a profissão que eu havia escolhido já estava em pleno andamento, mas o fato é que os oito anos de Brasil com um presidente sociólogo só ajudaram a aprofundá-la. Ingênuo e imaturo politicamente, eu me sentia em parte responsável pelos atropelos do meu colega de profissão. Tive então a sorte de poder mergulhar fundo num autor que me foi apresentado ao longo da minha graduação e esse mergulho fez com que a vontade de mudar o mundo, essa vontade que eu acredito que todo jovem que escolhe estudar sociologia possui (ao menos no início do curso), permanecesse em mim, até hoje, intacta. Esse autor foi Michel Foucault.
E foi um dos aspectos da obra de Foucault, um aspecto central diga-se de passagem, que me fez querer prestar atenção ao que FHC ora está propondo. Pelo que li até agora nas entrevistas (Correio Braziliense, Ilustríssima da Folha de São Paulo, e revista Trip), são variados (e, todos, bons) os argumentos que FHC utiliza para defender o fim da criminalização do uso da maconha, indo desde a diferenciação entre as drogas e os tipos de usos que delas se faz, passando pela inocuidade do seu combate (por meio da repressão policial e da punição dos envolvidos) e desembocando numa consideração a respeito do poder paralelo que o tráfico representa, um poder que iria sofrer um forte revés caso se desse a descriminalização. Pois bem, desses argumentos todos, o que remete a Foucault e o que me chamou a atenção é o que diz respeito à inocuidade da repressão e, mais particularmente, da punição: não adianta prender, diz FHC. É o mesmo que Foucault diria, só que nesse pensador francês, esse é um dizer muito mais profundo: não adianta prender não se aplica ao “problema” das drogas em particular, mas a qualquer tipo de “crime”. E eis que, por aí, pude começar a entender um pouco melhor os meus problemas com FHC.
Primeiro, explico o que é o dizer de Foucault. “Não adianta prender” é uma crítica que ele conduziu a uma das instituições que ele historiou: a prisão. Vigiar e punir, livro lançado em 1975 é onde ele faz essa história e de onde resulta essa crítica. Ele mostra que essa instituição, que passou a ter uma predominância abrupta e global (termo dos dias atuais, não dos anos ’70) em inícios do século XIX, tem uma funcionalidade nas sociedades atuais, uma funcionalidade da qual elas ainda não conseguiram se livrar e é bem difícil que venham a fazê-lo sem se alterarem por completo: elas, as prisões, são fábricas de delinqüência. Uma delinqüência, por sua vez, que justifica todo um aparato dito “de segurança”. Qual seria uma alternativa? Foucault não o diz, em parte, porque não tinha a resposta, em parte porque não acreditava que houvesse uma única resposta e que coubesse a uma única pessoa (ele), dizê-la. Mas, toda a inflexão que promoveu no seu pensamento no sentido da reflexão a respeito de uma ética nos leva a pensar que aí se encontraria uma saída: é preciso moldar os sujeitos, as almas, de modo a termos seres humanos melhores. Isso inclui não somente uma ênfase forte no aspecto formativo/responsabilizador das pessoas, em que as conseqüências de cada uma de suas ações sempre seja levada em conta, mas também a capacidade de perdoar nas ocasiões em que elas sejam atingidas pelas ações inconseqüentes, irresponsáveis e, em suma, anti-éticas dos outros. Coisa de grande porte, digamos, onde a própria necessidade dos (ou, de certos) aparelhos estatais se vê posta em questão.
Pois bem, com FHC, que certamente leu Foucault e Vigiar e punir, esse argumento do “não adianta prender”, não é um que aponta no sentido de uma oportunidade grande de, a partir de uma “crise”, mudar as coisas em profundidade ou, pelos menos, caminhar nesse sentido. Ele é um mero contorno diante de uma situação percebida como insolúvel, um mero cálculo de custo vs. benefício, por parte de um agente que se identifica com o aparato inteiro da segurança; um agente que possui todo o instrumental para fazer uma crítica mais profunda, mas que prefere ficar na superficialidade de um “realismo” (é isso o que ele reivindica para si, em contraposição a uma atitude “avançadinha”) acomodatício, feliz.
Uma crítica a FHC a partir do que ele não é, ou do que ele não leu ou, se leu, não registrou, contudo, tem o defeito de não ser inteiramente justa, de partir de um querer (mudar o mundo) que pode lhe ser absolutamente alheio. Ora, acontece que FHC, além de sociólogo é um político e, como se não bastasse, um político de sucesso, que chegou ao cargo mais alto dentre os existentes nessa esfera. Isso certamente não se deu exclusivamente às custas de sua serventia ou identificação com os aparatos de segurança, mas seguramente a partir de uma força motriz de pensamento, político, que também é passível de análise.
Essa sua atitude, hoje em foco, que vai de encontro a “valores” estabelecidos, não é algo inteiramente inesperado na trajetória de FHC. É um típico caso, ainda que isso não tenha aparecido em nenhuma das entrevistas que li, em que lhe caberia o recurso, amplamente usado por ele enquanto presidente, à diferença entre uma ética de valores e uma ética da responsabilidade, diferença essa estabelecida por Max Weber, sociólogo alemão, mas calcada fortemente na obra de Nicolau Maquiavel, mestre florentino do pensamento sobre a política. É por aí, eu diria, que ocorre o seu batismo e seu contato com isso a que se dá o nome de “espuma política”.
Só que esse entendimento seu, essa sua filiação a um prócer certeiro e de peso do universo do pensamento político, é uma filiação problemática, como já tentou mostrar, certa vez, o filósofo Renato Janine Ribeiro. A princípio, Maquiavel teria tudo a ver com essa relativa “falta de escrúpulos” da proposta de descriminalizar o uso da maconha, pois não haveria uma “ética” presente no seu pensamento. A princípio, Foucault e sua proposta de fechamento das prisões e de investimento numa ética que, inclusive, passasse pelo exercício do perdão, em nada se comunicariam com “os fins justificando os meios” imputados ao florentino. Contudo, Ribeiro conseguiu mostrar como o que verdadeiramente importa em Maquiavel não são os resultados, mas a ação (cf. http://www.renatojanine.pro.br/Etica/duaseticas.html); e onde há ação, onde há pensamento a seu respeito e crença no seu poder, há ética.
O príncipe é uma cartilha em que o seu destinatário é imerso num universo, o universo da ação, das ações que é necessário serem tomadas por ele em face do inesperado (a fortuna) e em face das ações prováveis de todos os que o cercam. Há um elemento nítido de construção (coletiva e realista) do novo, a partir das ações, que visam gerar efeitos e que reconhecem que não se está sozinho no mundo. O príncipe maquiaveliano tem, sim, que saber ser mau quando isso for necessário, mas a arte que lhe é ensinada por Maquiavel é inteiramente direcionada para um bem coletivo que se constrói em torno de seu agir – e não em torno ou a partir de valores previamente determinados. O que não há no pensamento de Maquiavel, portanto, é uma moral, e não uma ética; e eis que esse pensamento moldou, chocante que foi para a sua época e impactante até os dias atuais, um entendimento daquilo que possa ser a ação que faz jus ao nome de política.
Pois bem, voltando ao projeto de FHC em torno da maconha, a pergunta que cabe é o quanto que ele se encaixa nessa moldura maquiaveliana, a lhe assegurar, digamos, uma “nobreza” política. Seguindo o que nos ensina Ribeiro, vê-se nitidamente que ela corresponde muito mais a um outro entendimento – uma outra “abertura” no dizer desse autor, que se apropria do vocabulário enxadrístico – do agir político, que é justamente aquele que deriva do pensador anglo-holandês Bernard Mandeville. A “abertura Mandeville” em política é uma que data do final do século XVII e que gira não em torno do agir, mas em torno da canalização das forças sociais existentes, sendo o seu indefectível bordão o “vícios privados, virtudes públicas” e o seu exemplo mais significativo a defesa desse pensador da liberação da prostituição nos portos da Holanda: seria ela, um vicio da ordem do privado, que iria assegurar que as donzelas de família não fossem atacadas pelos marinheiros que lá atracavam, sedentos de carnes femininas; um mal necessário, digamos, à preservação da “virtude” pública. Não há aí, como se pode ver, interesse algum em desvendar condutas que possam levar a um crescimento coletivo, em padrões a serem atingidos de forma coletiva, mas sim uma defesa de técnicas de condução de condutas, técnicas essas que só visam salvar ou resguardar um “bem” já estabelecido – e estabelecido por poucos, diga-se de passagem. Não há o reconhecimento de uma igualdade de condições que gira em torno da capacidade que todos temos de agir, mas a noção de que há fluxos de interesses difusos que necessitam de alguém “superior” e de visão diferenciada para poder lhes dar um “bom destino”.
Não pretendo aqui adentrar mais nesse assunto que diz respeito à filosofia política. A tentação é grande de dizer o quanto essa discussão tem a ver com conceitos que Foucault trabalhou no final de sua trajetória, tais como o de “poder pastoral” e “condução de condutas” se contrapondo a uma “ética” e a uma liberdade. Só o que quero chamar a atenção é para o fato de o quanto fica claro que essas duas formas distintas de se conceber a ação política correspondem inequivocamente à diferença abissal – e muito ao contrário daquilo que FHC defende em uma de suas entrevistas – que existe entre os oito anos de governo desse que ora ressurge no cenário político a partir daquilo que todos julgavam(os) serem cinzas e os oito anos de governo do seu sucessor; uma diferença que diz respeito a enxergar as pessoas enquanto sujeitos (às vezes somente potenciais, mas sempre na perspectiva de serem fonte de soluções) ou enquanto objetos (ou seja, “problemas”, a serem “equacionados” por “admiráveis” sujeitos).