PPPPP by POA

BRASÍLIA TEM O (SEU MILES E) SEU QUARTETO CORSÁRIO

“(…) e se consideramos que, no final das contas o barco é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e que ao mesmo tempo está nas mãos do infinito do mar (…) vocês compreendem por que o barco foi para a nossa civilização, desde o século XVI até os nossos dias, ao mesmo tempo não somente, com certeza, o maior dos instrumentos de desenvolvimento econômico (não é disso de que lhes falo hoje), mas a maior das reservas de imaginação. O navio, é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se calam, a espionagem toma o lugar da aventura, e a polícia o dos corsários.”

Michel Foucault, “Os espaços outros” (Conferência proferida em 1967 e só autorizada para publicação em 1984)

No último dia 26/05 houve, no Plenário da Câmara Legislativa do DF –  local onde eu trabalho como Consultor Técnico-Legislativo – uma Comissão Geral em que se discutiu um assunto de bastante relevância e premência: até que ponto os estabelecimentos comerciais voltados para o espetáculo e a apresentação de música ao vivo e situados próximos a zonas residenciais podem continuar a exercer essa atividade e dentro de quê parâmetros. Iniciativa do Deputado Distrital Cláudio Abrantes, o encontro contou com a participação de diversos dos atores envolvidos, desde músicos da cidade, passando pelos empresários do ramo cultural/noturno e chegando aos fiscais que cuidam da aplicação da lei que regula a emissão de sons. Foi uma oportunidade de exercício do entendimento, num conflito de interesses instalado que tinha culminado na cassação temporária de alvarás de funcionamento de importantes estabelecimentos do ramo da diversão. Não sei o que deu, no final das contas, mas me contento com o que lá foi dito pelo maestro Rênio Quintas a respeito do esquecimento progressivo na história mais recente do DF do projeto inicial da cidade, que a previa como pólo gerador do novo, de novas idéias, novas formas. Foi muito belo o seu discurso, que não abrangeu exclusivamente o seu quinhão, a música, mas apontou para a produção cultural de um modo geral, para o papel da arte no mundo contemporâneo, tão carente de soluções e de beleza, da capacidade de celebrar a vida.

Pois bem, eis que alguns dias depois, mais precisamente no sábado subseqüente  a esse dia, o grupo de artistas que havia participado, com suas instalações e suas performances, da abertura da mega exposição sobre a construção de Brasília no mesmo prédio da CLDF, realizou, na chamada Praça do Povo que fica defronte a esse recém-inaugurado prédio, a segunda parte do seu “movimento”: esses quatro artistas, sob a curadoria de José Eduardo Garcia de Moraes, pegaram uma parte dos objetos que haviam exposto e com os quais haviam interagido no dia da inauguração e lhes deu uma nova cara. A mais evidente dessas transformações foi a metamorfose sofrida pelo belíssimo cavalo em acrílico e tamanho real de autoria de Waleska Reuter e intitulado “O Rei Secreto do Mundo”, que antes – e pintado num verde aprazível – se encontrava na entrada principal do prédio. Ele agora, na praça, reapareceu, desafiador, numa cor preta reluzente e soturna, lembrando o bronze, e montado em cima de uma base mais alta, que remete a um daqueles velhos carimbos que requerem um balanço, pr’um lado e pro outro, pra poderem imprimir a sua insígnia; e ganhou duas presas de elefante!

Os outros membros do grupo também fizeram suas derivações. Garcia de Moraes deixou quietas suas garrafas d’água Perrier descansando sobre o tapete de pratos brancos Luminart – tudo francês, e os segundos ainda com os respectivos preços à mostra – na luminosa instalação-homenagem ao amigo Athos Bulcão, bem debaixo de uma das escadas internas do prédio. Mas tirou novamente da caixa suas barras de manteiga Président e seus colares dourados empilhando as primeiras e vestindo os segundos, tal como havia feito no dia da inauguração. Uma expectativa continuou pairando no ar quanto ao destino final desse conjunto dourado e potencialmente gorduroso de objetos. Elyezer Szturm chegou vestido de deputado, de terno e gravata e fez lá algumas evoluções, ainda amuado, talvez, pela retirada misteriosa e repentina da sua harmoniosa instalação de centenas vassouras de piaçava enterradas, feito palmeiras, no gramado defronte e limítrofe do prédio com a calçada e a rua. Por último, Oziel, que, na inauguração, havia tatuado in loco, na coxa, a inscrição “O Não-Estrutural” e filmado essa operação, projetando-a em tempo real num monte de brita pintada de branco, fez uso novamente do próprio corpo como plataforma, desta vez cobrindo-o de cola para, em seguida, nele grudar os fiapos da própria barba, que ele havia cuidadosamente juntado, ao se barbear, nas semanas antecedentes; tudo pra ficar com a aparência de um sinistro lobisomem.

Eu não assisti a esses movimentos de sábado, não pude, por motivos alheios à minha vontade: eles me foram relatados. Hoje, deles, dos seus ecos, somente convivo, diariamente, com o “Rei Secreto do Mundo” que, incólume e impassível, continua a intrigar e espantar a todos, colegas e transeuntes. Mas fico me perguntando se não se trata de, assim como com o som, que “perturba” ou que “apraz” conforme a cabeça em que penetra, realizar uma Comissão Geral em que se discuta como essa Câmara Legislativa que se quer nova e dinâmica, impulsora do novo, vai receber, em seu novo lócus e nas suas novas instalações, essas evidências gritantes da condição de vanguarda que Brasília possui no universo das artes.

Eu acompanho o trabalho de José Eduardo Garcia de Moraes há anos e, nos últimos tempos, tenho tido o privilégio de partilhar de sua amizade, já que ele é velho amigo de minha esposa. Acho-o genial. São lendárias as suas performances, dentre as quais minha memória destaca uma, ocorrida no estacionamento do Instituto Cervantes, em que espalhou no asfalto algumas dezenas de Coca-Colas em garrafas PET (dessas de 500ml pra cima) e, a partir de certo momento, como se fosse um autômato, começou a catá-las do chão e a jogá-las pra cima, com toda a força, uma atrás da outra. As  garrafas voavam e, ao caírem, em alguns casos, devido ao gás que portavam, explodiam e saíam zunindo a toda velocidade nas direções mais imprevistas e de modo até mesmo a representarem um perigo (uma delas atingiu um carro, amassando a sua lataria), mas nada de José Eduardo parar. Ele tem também, ao longo de muitos anos, estado à frente de um projeto pioneiro denominado PPPP, Praça Portugal Para Performance, em que ele (e convidados) se apropria(m) dessa que é uma das únicas praças que Brasília possui (agora só me lembro da dos Três Poderes, da do Buriti e dessa da nova CLDF), entre as embaixadas de Portugal e dos EUA, para, de forma absolutamente autônoma, quando lhe dá na telha e em nome do puro amor à arte, promover esses desconcertos, que parecem sempre dialogar com estoques de objetos produzidos em série que nos cercam no cotidiano (tais como latas de Nescau, rolos de papel higiênico, bolas de basquete, carros) ou não (esferas de metal, colares reluzentes, roupas e calçados únicos, animais domésticos) e lidar com a construção e a destruição de estados de equilíbrio. Quando recebeu o convite para integrar a exposição sobre a história de Brasília, viu a possibilidade de transferir as atividade da Praça Portugal para aquilo a que deu o nome de Praça Paris, que é onde hoje descansa o “Rei Secreto do Mundo” – daí o nome dado ao novo projeto, PPPPP, Praça Portugal Para Praça Paris, assinado pelo conjunto de artistas denominado POA, Por Ordem Alfabética, para não ferir suscetibilidades, suponho.

Coincidentemente, estes dias peguei para ver com atenção e por inteiro um DVD que adquiri há algum tempo e que documenta o percurso feito por Herbie Hancock, o famoso tecladista, ícone do jazz, para a gravação de um de seus últimos discos. O DVD, sensacional, chama “Possibilities” (e eu suponho que o disco também deva assim se chamar) e o mostra arregimentando parceiros para a exploração de novas sendas na música: jovens e velhos músicos, conhecidos e desconhecidos do grande público, com os quais ele intuía que poderia compor e tocar novidades. Herbie Hancock integrou, na década de ’60, o lendário quinteto do trompetista Miles Davis e uma parte do filme é dedicada a mostrar aquilo que ele aprendeu junto a esse seu mestre e amigo. Miles, diz Hancock, não queria que seus liderados ensaiassem visando o concerto que iriam realizar no fim do dia, a apresentação que iriam fazer: ele os queria por inteiro naquele instante perante a audiência, o único tempo válido sendo o presente. Queria que eles não tivessem medo do novo e é justamente isso o que Hancock tenta reproduzir com cada um dos seus novos e frescos parceiros musicais. A certa altura, quando está criando e gravando com Carlos Santana e Angélique Kidjo, ele diz algo que me fez lembrar o POA e a CLDF, algo que diz respeito não à música, mas a como fazer a “música crescer a partir das realidades da vida”: “se você trabalha para tocar partes da vida de uma pessoa que têm a ver com elegância, beleza, graça, dignidade, é o oposto daqueles que estão tentando tocar o ser de uma pessoa e que tem a ver com o poder pelo poder”. Talvez, uma parte da saída do “Rei Secreto do Mundo” e da sua mudança de cor e de feição se deva a um sentimento próximo a essa oposição expressa por Hancock. Se for esse o caso, seria bom que alguém dessa nova CLDF interessada em se reposicionar perante a sociedade e em navegar rumo ao novo agisse rápido para evitar o mal-entendido; e não espantar de vez esses mestres do novo que, feito corsários, por lá aportaram com a melhor das intenções.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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2 Responses to PPPPP by POA

  1. Mario Salimon disse:

    Muito bom o texto Andrés, pois é rico em imagens e provoca o pensamento. A literatura, como bem exemplifica seu texto, é outro campo forte nesta cidade.

    O caso da música é o que talvez eu conheça melhor, pela minha vida nesse meio. O problema que temos chega a ser ridículo, pois é uma questão de noção de alteridade. Se os músicos lembrarem que são cidadãos e precisam dormir e ter paz, vão concordar que as condições oferecidas pelos bares (acústica, horário, estacionamento) hoje não atendem minimamente às necessidades de um sistema que seja aceitável. Se os cidadãos das redondezas pensarem que eles mesmos gostam de fazer suas festas, vão aceitar que o som faz parte da vida e que temos necessidade de nossos momentos de catarse, sobretudo nestes tempos em que as religiões são pouco críveis.

    Fico feliz que você tenha levantado esta bola porque, na minha opinião, a cidade carece das duas coisas: de arte e de civilidade. A discussão das condições em que esses dois fatores pudessem conviver seria um exemplo de exercício da democracia. Acontece que os dois lados têm sido pouco razoáveis. Tentei conversar sobre o tema com alguns amigos músicos, explicando que o pleito das vizinhanças é razoável, pois barulho é um problema ambiental e caso de saúde pública. Foi impressionante o espanto que causei, pois o entendimento deles é que eu deveria me alinhar com a categoria dos músicos. Ora, antes de ser músico, sou um cidadão e a saúde pública vem primeiro.

    Por outro lado, a reação extrema de se fechar as casas noturnas tampouco vai solucionar o problema, pois a cidade morta não interessa à gente. Por que não fazemos como em outros países, onde a música começa cedo e os bares são tratados com engenharia acústica? Isso resolveria boa parte do problema. A arruaça na rua, o problema de trânsito, estacionamento etc poderiam ser resolvidos pelas autoridades correspondentes com ações educativas e, se isso não funcionar, com a devida punição.

    Finalmente, o governo local poderia se consorciar com o federal no sentido de produzir, ao invés de um ou outro show megalomaníaco e caro, séries menores e localizadas, dando aos músicos e públicos a chance de um encontro às claras, agradável, como tanto víamos há 20 anos nesta cidade.

    Esses embates polarizados, em que um esquece o quanto possui do outro em si, pouco vão ajudar. Nesse sentido, fico contente que a CLDF esteja se prestando a ouvir e mediar conversas entre partes que são, no final das contas, peças de um mesmo todo.

  2. É isso, Mário, muito bem posto. A princípio, penso que um blog que se denomina “balbúrdia” não tem nem o que perguntar de quê lado fica nessa história… Mas, gracejos à parte, creio que a CLDF tem sim uma forte chance de ser útil, nesse papel de mediadora. Por outro lado, pensando o conflito em si (e outros possíveis e desejáveis) creio que o Legislativo deve tomar para si não só o papel daquele que produz a regra que vai resolver as coisas, mas o de pensar quê cara queremos dar à nossa cidade, ao nosso distrito. Em outros termos, assumir como sua a tarefa de contribuir na formulação das políticas públicas, em todos os âmbitos, não só no cultural.

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