A CORAGEM QUE A FILOSOFIA REQUER
Margarethe von Trotta está com novo filme na praça, Hannah Arendt, reconstituição de um episódio, central, da vida dessa filósofa alemã judia que viveu exilada nos Estados Unidos, depois de ter conseguido escapar ao terror nazista. Não é novidade, na filmografia dessa cineasta alemã, tratar do assunto de mulheres que exercem o pensamento e, em decorrência, a política, haja vista os (bem) anteriores Rosa Luxemburgo e Anos de chumbo. Von Trotta, uma cineasta com relativamente poucos títulos na sua extensa carreira, se encontra precisamente nesse cruzamento, introduzindo no cinema político – esse no qual se enfileiram contemporâneos seus, tais como Marco Bellochio, Costa-Gavras, Liliana Cavani, Gillo Pontecorvo, Andrzej Wajda, Istvan Szabó e até mesmo Bernardo Bertolucci e, mais recentemente, Ken Loach e Régis Wargnier – a plena carga do feminino.
O filme foca a cobertura que Arendt fez do julgamento de Adolph Eichmann, ex oficial nazista que, uma vez capturado pelo serviço secreto de Israel, foi levado a júri em Jerusalém, no ano de 1961. A cobertura foi feita a partir de uma sugestão dessa filósofa à prestigiada revista The New Yorker, quando ela já era uma renomada scholar que dava aulas na New School for Social Research, na cidade de Nova Iorque. Acabou virando o livro Eichmann em Jerusalém, mas antes foi publicada em partes, nessa revista. Foi um escândalo, tendo em vista que Arendt não partiu, como muitos esperavam, para uma aprovação imediata da condenação (que, de fato, acabou acontecendo) máxima de Eichmann, mas fez desse importante episódio um trampolim para levantar a questão do mal no mundo contemporâneo, um mal que, na sua visão, estava ligado ao abandono, por parte da humanidade, da capacidade que o homem possui de pensar.
Em outras palavras, Arendt se deu o trabalho de ouvir os argumentos desse oficial nazista perante os seus acusadores: nessa ocasião, ele alegou que teria simplesmente seguido ordens superiores. Quando todos, e principalmente as vítimas do terror nazista – e inclusive pessoas com quem Arendt mantinha vínculos de profunda amizade – se negavam a dar ouvidos àquele que viam como um mentiroso, ela achou que deveria ser dado um voto de confiança ao que ele estava dizendo. Ela viu que isso seria uma oportunidade para entender o quê tinha levado a humanidade a tal ponto de horror, pois disso talvez se conseguisse extrair o antídoto necessário para que esse ponto jamais voltasse a ser alcançado.
Em outras palavras, a condenação surda de Eichmann, à qual todos esperavam que ela se somasse, teria impedido que se olhasse para a experiência do nazismo como algo que se encontra muito mais próximo do que se quer acreditar. A recusa ao pensamento, como decorrência da própria engrenagem que conforma a vida moderna, com suas metas de produtividade postas em destaque, com sua ênfase na performance e sua confiança inconsútil na capacidade do conhecimento, eis aí uma condição que não é propriamente uma exclusividade do nazismo. A banalidade do mal, tese que Arendt levantou e que lhe serviu para resumir esse período de horrores do qual ainda se saía em 1961, é uma configuração bem menos distante do que parece, sendo a eventual consequência de todos os momentos em que se acredita que não vale a pena “queimar neurônios” com algo.
Eu tenho pra mim que o grande mérito desse comovente filme é o fato de ele tocar no cerne da questão de, afinal, para quê serve a filosofia?
Arendt nunca foi, na minha trajetória filosófica, um santo de inteira devoção. Digamos que tenha tido para com ela, até hoje, um respeito cordial, como esse que se tem com vizinhos que levam seus cachorros a passear e nos cumprimentam quando passam, mas que não se sabe o quê esperar na hora da reunião de condomínio. Discípula (e amante, na juventude) de Heidegger, esse outro gigante filosófico que aparece no filme como uma espécie de demiurgo – que, não obstante, sucumbiu ante a força nazista (teria pensado tanto e a tal extremo que, talvez, não tivesse tido fôlego o suficiente para fazê-lo no que diz respeito a política que o cercava?) –, ela sempre me pareceu se mover numa esfera um pouco mais idealista do que aquela que eu estava disposto a foucaultianamente aceitar – ainda que fosse uma pensadora que, qual Foucault, tivesse a política como o cerne do seu exercício profissional (e espiritual) diário.
O filme de von Trotta, contudo, me conduz a crer que Arendt poderia estar muito mais próxima do entendimento que a convivência com Foucault me levou a crer ser o correto quando o assunto é filosofia. Em ambos se encontra uma mesma defesa do ser humano como um ser que pensa. Não se trata, como é dito em algum momento do filme, de uma virtualidade ou de um projeto a ser perseguido e conquistado, de um caminho a ser trilhado em detrimento de outros: simplesmente, é uma condição inata, talvez uma condenação, algo de que o ser humano não consegue escapar, a não ser por força de um muito bem desenhado e dispendioso esquema em sentido contrário.
A filosofia, tal qual a definiu Foucault, não é uma forma de busca da verdade, mas uma forma de buscar que tipo de relação queremos ter para com ela. Isso implica uma coragem que é precisamente aquela que o filme de von Trotta retrata no que diz respeito a Hannah Arendt: a de ser capaz de sair de dentro da voragem da verdade e de levantar a questão sobre aonde essa nos irá conduzir. Nem sempre, como outro pensador político até a medula – Maquiavel – já sabia, é ao melhor lugar.
Compleeeexo….
Andrés, fui ver o filme ontem e só agora leio os seus comentários. Sem ser filósofa, tenho lido Hannah Arendt, aliás o livro que causou a celeuma toda, Eichemman em Jerusalém. Gostei do filme e gostei da análise que você faz, como sempre lúcida e enriquecedora. O que você cita do Foucault, sobre nossa relação com a verdade, me bateu forte e me fez admirar ainda mais a grande Hannah Arendt. Obrigada!
Andrés, gostei do seu texto, porque ele aborda a verdade. O Harry G. Frankfurt, no seu livrinho sensacional “Sobre a verdade”(Cia das Letras, 2007), diz uma coisa que eu gosto muito de repetir: “sem a verdade, simplesmente não temos uma opinião sobre as coisas, ou nossa opinião está errada.(pág. 68) Talvez Arendt tivesse uma opinião errada sobre a condenação de Eichmann, mas estava certa em não ter medo de estudar o mal. Talvez eu tenha entendido errado, por isso peço desculpas para discordar de um ponto. As razões são constituídas de fatos. O que é verdadeiro não pode, ao mesmo tempo, ser percebido como falso. Isso não varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com a percepção de A ou B. Isso seria absurdo. Assim, só é possível ter um único tipo de relação com a verdade. Qualquer outro tipo é falso.
Caro Marden, agradeço pela visita e pelo comentário de tão ilustre amigo. Você traz uma discussão que vale a pena. São dois pontos que têm entre si uma unidade. Primeiro, se H. Arendt estava certa ou errada no seu modo de encarar esse episódio. Sobre isso, confesso não ter uma resposta; mas sei, sim, que estaríamos errados ao entender que o filme é a esse respeito. Sobre a questão da verdade, fiquei curioso com o livro que vc. cita, não o conheço, nem seu autor. Receio que nesse ponto vamos ter uma divergência. Meus argumentos não vão na direção de um relativismo, mas sim no sentido de sistemas geradores de verdade. Toda a arqueologia do saber do Foucault é sobre isso (lembra do conceito de episteme? creio que já tivemos alguns dissensos a respeito…). Se você expandir isso para a política (que é o que importa, no fundo, para H. Arendt), vai ao encontro de Maquiavel, que passou a vida tentando mostrar que um governante não pode governar a partir da verdade (Frankfurt indo pro brejo a essa altura). Foucault dizia, sobre a verdade, ser apaixonado demais por ela para acreditar que ela fosse uma só. E, de mais a mais, eu também prefiro, como ele, um mundo a ser construído do que um mundo já pronto em que tenhamos que nos encaixar certa ou erradamente (A ou B).
Andrés, acho que vamos continuar divergindo, sem perder a amizade, é claro. Você é fã do Foucault, eu só li Elogio da Loucura. A frase que você citou é a mesma do Humberto, meu amigo canalha, que se dizia apaixonado demais pelas mulheres para amar apenas uma. Ao pretender amar muitas, não amava nenhuma, embora estivesse apaixonado por todas. Para mim o mundo é binário, 0 ou 1, V ou F. As zonas cinzentas só existem até tomarmos uma decisão. Mas posso estar errado. Durmo melhor achando que estou certo. O livrinho que citei é “Sobre a Verdade’, Companhia das Letras, escrito por Harry G. Frankfurt, professor emérito de filosofia da Princeton University. Em 2005 Frankfurt virou best-seller com outro livrinho chamado “On Bullshit”, também traduzido e publicado pela Cia das Letras, que ainda não li.