OS TURBANTES TAMBÉM SÃO BRASILEIROS
Termina amanhã o 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, quando serão anunciadas as premiações. Hoje à noite ainda haverá a exibição dos últimos filmes, tanto de documentário quanto de ficção, além da Mostra Brasília, que ocorre à tarde. Creio que é um bom momento para uma avaliação. Descubro que sou um ser tendente a encontrar tônicas, correspondências, movimentos inarticulados, mas ainda assim subterrâneos (herança foucaultiana?): foi assim o ano passado, com a presença forte da subjetividade; e está sendo assim, este ano, quando dois elementos me chamam a atenção, dentro do que tenho visto até o momento.
Advirto, antes de mais nada, que tenho feito um esforço, mas não tenho conseguido acompanhar direito a parte ficcional da mostra competitiva nacional. Ela começa de noite, às 21 horas, e a essa altura, depois de ter, por envolvimento profissional e interesse, visto todos os filmes da Mostra Brasília, bem como a maioria dos documentários da mostra nacional, vejo-me tomado por um certo cansaço físico e mental. Se der, hoje ainda quero ver os longas de ficção do Paulo Sacramento (Riocorrente, em reprise) e da Paula Gaitán (Exilados do vulcão), mas vamos ver até onde aguento.
A primeira tônica que salta aos meus olhos, muito no universo do documentário, diz respeito a uma reconfiguração de onde o Brasil, o grande e eterno personagem desse festival, acontece. Trata-se da cidade? Trata-se do campo? Sim, essas são constantes de toda equação possível a unir cinema e sociologia (e a sua prima pouco badalada, a demografia), mas não: esse binômio chato parece estar prestes a ser substituído pelo percepção de que o Brasil também está do lado de fora de suas fronteiras, de que há um Brasil rico, emocionante, acontecendo – e tendo acontecido – na interação global em que estamos todos mergulhados.
Meu filme favorito, até o momento, é O mestre e o Divino, de Tiago Campos, jovem documentarista de Pernambuco vinculado ao projeto Vídeo nas Aldeias. Trata da relação entre um missionário salesiano alemão, Adalbert Heide, que se estabeleceu em Nova Xavantina, Mato Grosso, ainda nos anos 1950, e um jovem índio xavante que foi seu aluno e que, tal qual o mestre, cultiva uma paixão pelo registro documental, cinematográfico, da vida do seu povo – que acaba sendo o mesmo povo do missionário, já que os Xavante, ao longo do tempo, o adotaram, o batizaram e o entronizaram enquanto cacique. O que foi que o trouxe ao Brasil, é a pergunta que é feita ao agora já idoso, mas não menos vivaz, missionário.
Um sonho, de algo muito distante e diverso: aos poucos, pelos detalhes, vamos conhecendo o espírito franco e singelo, mas também desvairado desse homem corpulento, que guarda seu tesouro cinematográfico com especial zelo e que não tem vergonha alguma de absolutamente nada, a começar do seu penteado, num estilo que aproveita o comprimento dos poucos cabelos restantes para circundar, com gumex, a careca, formando uma espécie de ralo e lambido turbante, composição que não escapa ao olhar respeitoso mas quase atônito – face ao exotismo de tudo – de Campos.
Mas não é unicamente esse ser errante – ou seria acertante? – que se desvenda diametralmente nesse documentário: é também o seu discípulo, de nome Divino Tserewahú. Hoje reconhecido cineasta indígena e funcionário de um museu em Campo Grande, seu drama identitário, perpassado pelo elemento teológico que o “mestre” também lhe incutiu (era essa, afinal de contas, a sua missão), é o segundo eixo sobre o qual se move esse filme. Em um de seus depoimentos, ele reconhece, de modo individual e coletivo, a importância que o aprendizado das coisas brancas, por intermédio do mestre missionário, teve para o seu atual “ser alguém”. Mas, quando se trata de dizer precisamente que ser é esse, eis que não é a palavra “brasileiro” que surge, mas sim “ameríndio” – o que descentra tudo, até mesmo a percepção inicial do missionário, que veio ao encontro de “índios brasileiros”.
E digamos que esse rápido, sutil deslocamento a nos descentrar do solo em que acreditávamos estar firmemente assentados é algo que aparece em uma série de outros filmes vistos nessa edição do FBCB. De início, o encontramos no filme que o abriu, o documentário de Betse de Paula sobre o fotografo Sebastião Salgado, Revelando Sebastião Salgado. Quem é esse super fotógrafo que tanto orgulho nos dá? Certamente: um mineiro/capixaba, um ser do Vale do Rio Doce, que se deparou, ainda jovem, com uma ditadura nada bonita (e se exilou); mas é também um ser cujo neto fala em francês com seu pai e um cidadão do mundo que, em casa, nada mineiramente, interrompe a visita que recebe para lhe apontar a sujeira que seus sapatos estão trazendo para dentro do seu lar, tão custosamente mantido asseado – o filme também mostra, a esse respeito, a época de penúria financeira que ele, a mulher e os filhos enfrentaram no começo da carreira, quando moravam num espaço diminuto.
O deslocamento também ocorre no belo documentário etnográfico Hereros Angola, de Sérgio Guerra. Focando os pastores transumantes de uma parte desértica de Angola, esse filme é um verdadeiro show documental. Todo narrado em língua nativa, atinge um ponto de excelência no cinema etnográfico, em que toda insinuação subjetiva, todo resquício de uma autoria – e, consequentemente, de uma brasilidade – é simplesmente inexistente, a intimidade dos nativos com a câmera, conseguida certamente após anos de proximidade etnográfica, contribuindo sobremaneira para tal. Os mais variados aspectos da vida desse povo são abordados, a tal ponto de fazer com que o espectador não se espante mais, a certa altura, com os costumes (e vestimentas) os mais esdrúxulos, percebendo a sua lógica e passando a se dar conta da própria aleatoriedade de sua vida e dos costumes da sua cultura.
Por último, nesse primeiro quesito, um outro surpreendente documentário, Outro sertão, das capixabas Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, que foca o trabalho do escritor João Guimarães Rosa como vice-cônsul – diplomata de carreira que era – em Hamburgo, na Alemanha, no período de ascensão e vigência do nazismo. Nessa ocasião, Rosa teve papel decisivo para que diversas famílias judias obtivessem um visto que lhes permitiu fugir do horror, desembarcando no Brasil. Um trabalho humanitário, não muito distante daquele que recentemente vimos ter lugar na vizinha Bolívia, também protagonizado por um diplomata brasileiro, exemplo de um Brasil que, como a literatura de Rosa, pode ser verdadeiramente grande, universal pra todos os efeitos, fazendo forte diferença.
Deixo o segundo traço, por mim identificado, para o próximo post, a fim de não fatigá-los – perigo real existente no mundo das ideias contidas nas imagens em sequência, tal como comprova essa minha experiência nesta edição do Festival.