A ESPIRITUALIDADE ONDE MENOS SE ESPERA
Escrevo ainda sob o impacto de um filme delicado, que vale a pena ver, creio eu, porque fala sobre questões que estão afligindo a um amplo número de pessoas próximas e distantes nos dias atuais: as relações e a perspectiva de um mundo onde ela não mais existam. Estou falando do filme Ela, do cineasta Spike Jonze, em que o protagonista se enamora e passa a ter um caso de amor com um sistema operacional.
É claro que contribui muito para que isso aconteça o fato de a voz desse sistema operacional ser a de Scarlett Johansson. Contudo, o filme é bem mais do que os momentos em que nos faz rir, com o absurdo de situações que não estão tão distantes assim na sua possibilidade, ou o emaranhado de truques que lhe dão um tom pitoresco (as calças masculinas com cintura acima do umbigo, os games interativos a indicar um futuro a médio prazo). Estamos longe de comédias como as que teríamos nos anos 1960, talvez com um Jack Lemmon no lugar de Joaquin Phoenix (o protagonista), uma loira e alguma engenhocas divertidas apontando para um mundo Jetsons.
Sistemas operacionais inteligentes são uma realidade. O mundo hoje, com as pessoas que o habitam, vive grande parte do seu tempo nas malhas de uma rede. As questões de Ela são questões reais: essa rede é um abismo ou a possibilidade de um mundo inteiramente novo, onde vija um novo amor? Tudo isso passa pelos dilemas que um aplicativo como o Facebook – que completa dez anos de exitosa existência – traz; e através do qual muitos começam a se deparar com o termo “bloquear” (alguém) ou ser bloqueado. Seguido a um momento eufórico inicial, os usuários desse programa passamos a descobrir a chatice dos outros; e também a tentadora possibilidade de eliminarmos tal chatice num simples aperto de botão! Isso dá um medo (nunca bloqueei ninguém, mas já considerei), pois traz consigo a pergunta: onde pode parar? Até que ponto o primeiro bloqueio não equivale a uma invasão da Polônia? Está mesmo valendo a pena manter uma conta Facebook? Muitos estão se perguntando isso neste instante.
Pois bem, Ela inicia nesse ponto, com Theodore, o protagonista, espalhando nãos a torto e a direito na rede então turbinada; e alguns sins, que só lhe confirmam o acerto dos nãos majoritários. Pouquíssimos amigos reais, uma ex ainda a doer por ocupar um território, o das lembranças, livre do virtual (por mais paradoxal que isso soe) – mas, também, maculado por uma culpa. E eis que surge Samantha, o (a) sistema operacional que possui o dom da descoberta, que talvez seja o que há de mais humano em nós.
A vários dos seus interlocutores, Theodore, quando indagado a respeito desse seu novo affaire, relata precisamente isso: que o que o encanta em Samantha é a sua capacidade de se surpreender com o que vê, ouve, absorve, de se empolgar com o mundo. E a convivência com alguém assim, de fato, muda a sua vida. Estamos, nesse instante, num plano de que alguns, nos dias atuais, têm ojeriza: o plano espiritual. Só que, como Samantha carece de uma morfologia, sua natureza sempre aberta ao novo a conduz a um plano ainda mais avançado do que esse (ainda que dentro da mesma diretriz), onde a linguagem, criação humana, já não dá conta dos fenômenos vividos.
Mas, retornando um pouco à dimensão lógica (e é pra isso que serve amiga de Theodore, que também vive seu calvário em função de não conseguir distinguir com clareza o limite da solidão irreversível), aquela onde se procura entender o que é que acontece conosco nessa interface com a tecnologia, há um momento que considero crucial, que é quando ambos, ele e a amiga, se indagam sobre a validade de uma relação de tal ordem (com um operational system). É isso uma relação, pergunta Theodore? Ao que sua amiga responde: não posso saber, pois não estou dentro dela. Genial!
Caberá a cada um que ver o filme responder a tal pergunta. E, ao fazê-lo, por tabela, se perguntar sobre o que é que define uma relação. Acho essa uma pergunta vital, nos dias atuais. O simples fato de sermos feitos de carne e osso, de termos morfologias parecidas, de habitarmos as mesmas cidades, países, planeta, garante que, ao nos conhecermos, tenhamos uma relação? Tudo nos leva a pensar que sim; mas e se não? Se relação pressupor outra coisa? E se relações são o que realmente interessa na vida, o que verdadeiramente as torna dignas de serem vividas?
Essas indagações podem ser úteis para todos os que estamos diante do dilema Facebook, acima apontado: que possamos usar essa ferramenta para incrementarmos as nossas relações, pois são elas que, no fundo, valem. O mundo, as verdades? Que se danem: eu já me ocupo e me ocupei deles a minha vida inteira! Eu quero é saber como andam meus amigos e quero conhecer novos amigos, gente bacana, elegante de preferência, que se estiver a fim de contar que comeu ou bebeu isso ou aquilo, ou sentiu tal ou tal sensação, beleza! Pode até ser um sistema operacional, mas que demonstre uma capacidade mínima que seja de se rever constantemente.
E tem mais: o tema das relações é crucial, também, para a política no mundo atual. Foucault é o cara que trouxe isso à tona, creio eu, dando ainda desconhecida legitimidade aos protestos que vemos eclodir mundo afora, ao deslocar a relação vertical na qual se baseia a política partidária (ou mesmo a relação que os intelectuais “universais” visam manter com as massas) para a grade de leitura das relações horizontais entre governantes e governados. Essas relações existem e têm as mais variadas abrangências, os mais variados escopos e, last but not least, as mais diversas justificações. Se essas últimas são reais ou irreais… cabe a cada um que estiver dentro delas (conforme o conselho da amiga de Theodore) decidir. E, em seguida, blo(c)queá-las ou não.
Andrés, ainda não vi esse filme, mas agora faço questão de ir assistir. O tema não tinha me interessado até ler sua análise. Você põe o dedo na ferida. E nos leva a pensar. Um abraço
Cléa