Ninfomaníaca, de Lars von Trier

A ‘COISA EM SI’ FINALMENTE ATINGE A TELA

Lars von Trier é um permanente desafio, não só pra quem se aventura, como eu, a escrever sobre os filmes que vê (e gosta), quanto pra população mundial. Digo isso porque já fui duas vezes ver o seu último Ninfomaníaca e me surpreendi com a plateia. Na primeira, assim que o filme estreou, cheguei em cima da hora e quase que não consigo ingresso (foi o penúltimo, colado na tela), coisa que nunca pensei que pudesse ocorrer num filme desse diretor, cujo cinema, como já comentei aqui, tende a ser indigesto. Na segunda, umas duas semanas depois, reparei mais na reação do público (uma sessão quase igualmente cheia, com bastantes jovens) ao final do filme e percebi um espanto boquiaberto. Não sei os números, mas tenho a sensação de que ninguém está dando bola pro vexame que Trier deu na coletiva em Cannes ao lançar Melancolia, seu filme anterior, há cerca de dois anos atrás: todos querem mesmo é ver o que ele tem a nos dizer nos seus contundentes filmes.

Dito isso, vamos a Ninfomaníaca. Ele demandou de mim, coisa que nunca aconteceu – geralmente quando um filme suscita uma busca auxiliar, ela se resume a outros filmes –, uma consulta a livros. Os filmes de Trier sempre foram filosóficos, sempre apontaram para questões desse âmbito, o que serve para explicar, em parte, a sua indigestibilidade. Ser filosófico, friso, não equivale, de por si, a mérito algum: é tão somente uma característica particular desse cineasta. Pois bem, a impressão que tive com Ninfomaníaca é a de que com esse filme, Trier, finalmente, encontrou um lugar onde encaixar as suas questões, coisa que, em filosofia, costuma-se chamar de “filiação”.

E a quem é que esse irrequieto dinamarquês se filia? Ora, não restam dúvidas que a Sade. Fui justamente consultar, a esse respeito, a maior especialista que conheço sobre esse assunto, Eliane Robert Moraes, filósofa que admiro – autoridade na obra não só desse ilustre marquês, mas do seu seguidor mais aguerrido de cerca de dois séculos depois, Georges Bataille – e cujo Perversos, amantes e outros trágicos, uma coletânea que gira em torno dos autores que, como esses dois, se encaixam na tradição da libertinagem, foi lançado em 2013, sem que eu tivesse tido o cuidado de comprar e ler. Estou corrigindo esse meu lapso, deliciando-me com a prosa magistral dessa ensaísta e com o que ela diz sobre Nabokov, Aragon, Apollinaire, Cleland, Laclos e uma série de outros que formam uma espécie de clube junto com essas duas outras figuras centrais do saber libertino.

No filme em questão, temos a personagem Joe, vivida por Charlotte Gainsbourg, a qual, toda estropiada – não se sabe ainda por que –, é acolhida por Seligman (Stellan Skarsgard) e começa a lhe contar suas desventuras, que a teriam levado a tal estado. São todas de ordem sexual, onde vigora o inteiro excesso que justifica o nome do filme. Seligman, cujo nome, conforme ele ensina, quer dizer “homem feliz”, é alguém que se revela, eu diria, tanto quanto Joe, ao longo desse processo confessional: é seu ouvido, de forma alguma mudo, que permite que a ninfomaníaca Joe prossiga na sua narrativa, que se inicia aos quatro anos de idade. Ambos estabelecem um diálogo no qual esse homem – de quem, no final das contas, pouco acabamos sabendo – nada tem de passivo.

Em que consiste a escuta repercutiva de Seligman? Ora, reparem, ela é sempre no sentido de dar aos excessos narrados pela protagonista, ao seu desregramento, uma sorte de encaixe lógico, esfriando o entusiasmo do seu discurso. Esse, tende a levá-la ao sofrimento da desrazão, mas Seligman a demove dessa perspectiva, mostrando-lhe a normalidade de tudo o que ela lhe narra. Da forma como ela perdeu a virgindade sobrou o mero ressoo de dois números? Esses, chama-lhe ele a atenção, integram a sequência de Fibonacci, que logo lhe explica o que é. Em seguida, ela e sua amiga disputam um campeonato de foda ferroviária cujo prêmio é um saquinho de confetis? Tudo isso é comparável à pesca esportiva sobre a qual ele revela domínio, tal como sobre a música. Na morte do pai ela ficou excitada sexualmente? Nada há demais nisso. Múltiplos amantes e seus estilos? Bach e a polifonia… Nada disso é novo para aquilo que Eliane Robert Moraes pesquisa há décadas, nas pessoas e nas letras dos seus libertinos.

Na análise (“Um olho sem rosto”) que faz, por exemplo, do livro História do olho, de Georges Bataille, essa autora paulista mostra como o essencial está no contraponto entre o tom frio (glacial, nas palavras de Vargas Llosa, por ela citado) da narrativa e a vertigem vulcânica dos acontecimentos narrados. Os personagens vivem um frenesi sexual ao mesmo tempo em que o tom da narrativa é realista: “trata-se de um relato seco e despojado, que evita rodeios expressivos, subterfúgios psicológicos, ou evasivas de qualquer outra ordem.” (p. 47) Também, a despersonalização dos personagens, que culmina, na obra de Bataille, com a formulação sobre o erotismo enquanto “fusão, a supressão dos limites” do ser com o cosmo à sua volta. Há cenas, difíceis de entender, nesse sentido, em História do olho, nos lembra Moraes. E há uma cena em particular, muito breve, em Ninfomaníaca, quando Joe, ainda menina, está prestes a sofrer uma cirurgia e tem uma súbita percepção cósmica, conforme conta a Seligman – isso para não falar de todo o envolvimento que ela tem com as árvores, a floresta, as folhas (que coleciona num álbum), herança do pai.

Num outro texto (“O filósofo bacante”) da coletânea acima referida, também sobre Bataille – e seu livro A experiência interior – Moraes menciona um capítulo de um livro do ilustre (e enfadonho) filósofo Jürgen Habermas sobre esse escritor e filósofo francês, onde esse primeiro o ataca por um “’vaivém irresoluto entre a filosofia e a literatura” que o levaria a exceder os limites do pensamento conceitual. Vale a pena atentar para o que a autora diz, então, a esse respeito:

“Ainda que a crítica de Habermas tenha pertinência para quem só concebe a filosofia como domínio do conceito, ela peca por esquecer que Bataille é herdeiro de toda uma tradição do pensamento francês que, pelo menos desde o século XVII, combina as formas de pensar da literatura às da reflexão filosófica. Essa tradição, que na França setecentista floresceu sob o nome de literatura filosófica, passa por pensadores do porte de um Pascal, de um Voltaire, de um Rousseau, ou ainda de um Sade, este último influência decisiva do autor. Desnecessário dizer que se trata de um pensamento que perde em rigor lógico o que ganha em liberdade de expressão, como deixa evidente o próprio texto de Bataille, que opera tanto com conceitos quanto com imagens, sem observar qualquer hierarquia.”(p. 88)

O saber libertino é uma filosofia que agora se vê sendo posta, finalmente, no cinema. Como? Não há o Ligações perigosas? Não tem aquele filme sobre o Marquês de Sade, com o Geoffrey Rush? E o Pasolini e sua trilogia erótica? Quanto a esse último, não creio que seja algo pra valer, até porque o próprio autor abjurou do que fez. Não se sustentou, foi, talvez, um ensaio. O filme com Rush, foi bacana, mas ainda exterior à forma propriamente devassa: quase que etnográfico. Restaria o Ligações… O que é que falta nele do ponto de vista de uma linhagem libertina? Para responder a tal, recorro a outro ensaio de Perversos, amantes e outros trágicos, desta feita intitulado “O efeito obsceno”. Nele, que parte justamente de uma passagem do romance de Choderlos de Laclos, Moraes fala da importância da “palavra pornográfica” na tradição erótica: ela “acaba subvertendo sua função abstrata de signo para ganhar um corpo próprio que, no limite, substitui o corpo real.”(pp.98-99) O filme de Trier não se furta a mostrar o sexo. Ele segue, assim, a trilha inaugurada, conforme nos mostra a autora, no escrito do renascentista Pietro Arentino, Ragionamenti (1534-1536), quando duas prostitutas conversam sobre o tema da superioridade da profissão de prostituta sobre as de freira e esposa e, nisso, uma acaba recomendando à outra que “fale claramente, e se você quiser alguém, diga ‘foda’, ‘pau’, ‘boceta’ e ‘cu’; só os sábios da Universidade de Roma não vão entende-la.” (p. 93)

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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2 Responses to Ninfomaníaca, de Lars von Trier

  1. pararatimbum disse:

    Andrés, que bacana acordar e me deparar com teu blog.
    Quanto ao filme do Triers, eu teria muito também a dizer, pois me pareceu um filme repleto de camadas, que se entrelaçam muito bem, a meu ver. Gênero, Diferenças Culturais, Caos e Ordem, Afetos e Desafetos, Lembrança e Esquecimento, Fala e Escuta, Amor e Sexo.
    A tua inserção do Bataille é perfeita. Bem como a percepção de que há uma escuta germânica e uma fala francesa, uma escuta yidish e uma fala católica. Nos nomes dados às personagens, esbarram gêneros e religiosidade. Eu cheguei a pesquisar sobre o nome “Seligman” e, pasmem, raramente ele é dado a um menino como primeiro nome, mas é muito popular em geral. Da mesma forma que Joe soa como um apelido que remete muito mais ao masculino do que ao feminino mas, também, como em Seligman, transita livre entre as duas “plataformas” de gênero.
    E assim vai…
    Delícia ter um filme que dá o que pensar!

    • Obrigado pela leitura e comentário, pararatimbum. O nome Seligman é algo que não tive espaço para desenvolver mais. Eu acho que é chave importante. Não sei como será o desenrolar desse filme, mas a minha percepção, de acordo com o que tento mostrar acima, é a de que das cinzas em que tudo começa no filme, um vislumbre de felicidade aparecerá, via um saber libertino. “A felicidade libertina” é o título do primeiro livro de Eliane Robert Moraes, sua dissertação de mestrado sobre Sade. Muito bom! E, no mais, a felicidade é tema, me parece, há muito expurgado da filosofia. Sendo assim, ele agora volta, via cinema, com Ninfomaníaca. O seu sucesso de público também passa por aí, creio eu.

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