PELO ESQUECIMENTO DEFINTIVO DA ESCALA BUCOLICA (E A FAVOR DO DESABROCHAR, SEM VOLTA, DA ESCALA GREGARIA)
Uma discussão das melhores se avizinha nesta cidade que acaba de completar 55 anos. É certo que não se trata de uma exclusividade: diz respeito aos limites de emissão sonora – vulgo, Lei do Silêncio –, alvo de leis por tudo quanto é lado neste planeta. Trata-se, na verdade, da revisão de uma lei ora em vigor, que tem sido usada para fechar diversos estabelecimentos comerciais que ofereciam cultura em seu cardápio – em especial, música. O assunto tem gerado intensa troca de opiniões nas redes sociais e começa a aparecer na mídia e fazer com que o aparato do governo local, recém empossado, comece a se mexer, passando tardiamente a dar ouvidos a um segmento – o dos artistas, frequentadores, empregados e empresários locais afetados por esses fechamentos – até agora tido como um com o qual o chefe desse aparato – o governador Rollemberg – tinha uma afinidade.
Tenho acompanhado o movimento que ora surge, ao mesmo tempo em que comecei profícua discussão com amigos muito próximos que tem manifestado, a despeito do seu envolvimento – inclusive, mais direto que o meu – com a música, serem contra a iniciativa da revisão da lei. A situação, pra mim, por vezes toma a feição de uma encruzilhada pessoal, posto que tem sido sempre os argumentos da primeira turma – e não os dos meus companheiros de mais longa data – os que tem me convencido.
Que turma é essa? Bem, em primeiro lugar, eu diria, grosso modo, que são artistas de uma geração posterior à minha e dos meus amigos. Muito provavelmente, a maioria é nascida na cidade – ao contrário de mim e dessa minha outra turma. Há algo aí de diferente, não tem como negar: os seus horizontes se impregnam, de forma muito mais acentuada, de árvores retorcidas, luz radiante, cachoeiras e entardeceres multicoloridos. Mas, também, percebo que há neles um vínculo muito mais forte com os meios de expressão de que fazem uso; uma radicalidade bem mais evidente, inclusive no que tange à adoção da arte como meio de vida. (Não quero, com isso, desmerecer os artistas brasilienses da minha geração e das que a precederam. Eles estão aí, com maior ou menor dificuldade e sucesso junto ao público. Ser artista, para muitos, não é tanto uma escolha – ainda que essa seja uma questão crucial – mas uma inevitabilidade: não adianta achar que a linguagem falada ou escrita dê conta de tudo o que as pessoas têm a dizer; e o encontro de uma cabeça e um coração com uma forma de expressão que lhes dê vazão vai ser sempre algo impossível de se deter enquanto chama vital.)
Não adianta, me parece, querer entender o que está sendo proposto, o enfrentamento ao qual muitos ora estão se lançando, com os olhos de um passado de precariedades e, até mesmo, pioneirismo. No máximo, pode-se perceber a existência de um legado, pois alguns desses jovens artistas a que me refiro são filhos de heróis culturais – como é o caso da atriz Maíra Oliveira, filha de Ary Pára-Raios – ou mesmo de artistas não tão conhecidos. A questão, hoje, se resume mais ou menos ao seguinte: ou a arte tem um lugar na agenda viva da cidade, no seu projeto de presente e futuro (e um lugar no mesmo patamar de importância dos diversos outros aspectos), ou, então, por favor, avisem a essa geração de artistas, de forma agora definitiva, que esta cidade não lhes convém, que o que eles querem e precisam não se encontra aqui.
Brasília nasceu como um experimento urbanístico. Se deu certo ou não, há controvérsias – eu em particular acho que não, que o seu ordenamento espacial setorizado, se, por um lado, dá margem para a existência da tão decantada “escala bucólica”, por outro, impede o que as cidades oferecem de mais rico, que é a possibilidade do encontro com o que é diverso. O que não se pode negar, contudo, é que vida passou, também, a acontecer no bojo desse experimento. E, sendo assim, talvez seja chegada a hora de a cidade – e não mais os artistas – fazer uma escolha entre essa vida, por vezes frágil, mas intrinsecamente pulsante, e a rigidez de seu concreto e das suas linhas retas (a se imiscuírem, tudo indica, no modo de pensar dos seus habitantes).
Os estabelecimentos comerciais que oferecem cultura são entrepostos (hubs, na linguagem da informática, com suas diversas entradas e saídas) que permitem a descoberta do novo, do inesperado, daquilo que nunca se imaginou. Sua importância, ainda mais numa cidade como Brasília e seu traçado higienizante (haja vista o que mostram os filmes de Adirley Queiroz como A cidade é uma só? e Branco sai, preto fica), não pode ser negligenciada. Numa tradução para o universo que sempre me foi mais familiar, eu diria que eles equivalem às livrarias. E eu me recordo de uma em particular, a Casa do Livro, que funcionou por muitos anos no Conic, em cujos papeis de embrulho se lia um verso certeiro e despreocupado de Drummond: “livraria: lugar de danação, lugar de descoberta”. O que seria de mim se não fosse esse lugar?
Sim: as bibliotecas existem, são vitais. Mas nelas há sempre de prevalecer o silêncio. E, mais, elas são lentas, estão quase sempre defasadas em relação ao que se publica. Penso que algo parecido se dá com os estabelecimentos que oferecem cultura na sua relação com os chamados “espaços culturais”, museus, teatros, palcos e salas de exposição, geridos direta ou indiretamente pelo poder público. Esses são muito importantes; mas, o que surge mesmo de novo – e a chance que alguém tem de dar de cara com o desconhecido que pode mudar a sua vida –, isso se encontra nos bares, praças, botecos, galerias, pistas de dança, ateliês e cafés de uma cidade.
P.S.: Acho que nem preciso dizer que a proposta de revisão da Lei do Silêncio não deixa de prever mecanismos de fiscalização e punição de emissões sonoras que efetivamente prejudiquem as pessoas no seu merecido descanso. A ciência – e a tecnologia dela derivada – será uma forte aliada quando se tratar de encontrar o ponto exato, no lar de cada um, em que isso começa.
P.S. 2: Está marcada para o dia 16/6, às 9 horas, na Câmara Legislativa do DF, uma audiência pública para a discussão dessa proposta, encampada pelo deputado distrital Ricardo Vale, e cujo número é PL 445/2015.
Muito bom texto. Mais convergimos que divergimos neste caso. Abraço.