PRA ONDE CORRER?
As vozes mais coerentes do Brasil atual, dentre as quais reina, na minha opinião, a do economista Marcos Lisboa, nos dizem que há poucas chances de escaparmos do atoleiro. Não se trata somente de dar ênfase a uma austeridade fiscal (que fica cada vez mais distante), mas de, no balanço da política com a técnica, elaborar políticas públicas que não sejam um mero desperdiço de dinheiro ao sabor do populismo.
Por outro lado, temos que reconhecer, finalmente, o crescimento avassalador do cristianismo evangélico, um fenômeno social que já adentrou a esfera política – e cujo coroamento foi a entrada de André Mendonça no STF. É urgente que leiamos o que Juliano Spyer escreve em seu Povo de Deus. A explicação do bolsonarismo, em boa parte, está ali. Hoje, um terço da nossa população é evangélica; e oitenta por cento desse um terço é bolsonarista. Isso quer dizer que Bolsonaro tem, só aí, 26,5% dos votos; e que, a despeito das últimas pesquisas de intenção de voto, ele não é carta fora do baralho, longe disso.
Ou seja, nem economia, nem política estão com bons prognósticos. Diante disso, o que fazer, pra onde correr? Combater o que já é uma realidade assentada nas crenças de cunho pessoal (a fé) de cada um? Ou entender que, no fundo, foi a mediocridade nossa como nação democrática, a incapacidade de nos dar conta do quanto somos insensíveis ao sofrimento alheio, herança segura de um passado escravocrata, que nos conduziu a isso?
Tá, dirão muitos, mas o que dizer do PT e dos seus governos, com quase 15 anos no poder? Por acaso não foi a chance de mostrar algo de diferente nessa nossa história senhorial, violenta e marcada por privilégios? Sim, eu diria, foi uma chance e tanto, mas desperdiçada. Em primeiro lugar por esse partido não ter sido capaz de manter um modelo econômico que estava dando certo e contava com a força da iniciativa privada, geradora de oportunidades e de crescimento. As pressões internas por parte da sua intelligentsia, fortemente avessa a evidências e irremediável dona da verdade, não permitiram que se seguisse nesse caminho, impondo uma nova e furada “matriz” nesse campo.
Em segundo, porque as suas lideranças, seguidas pelo partido como um todo, adquiriram pouco a pouco um apego ao poder. Se um sentimento legítimo de querer um maior bem-estar para todos – de inclusão social – esteve presente ao longo dos primeiros anos dessa agremiação partidária, com as vitórias nas urnas e o transcorrer dos anos os mais pobres e suas carências passaram a ser o mero componente de uma equação, em vez de seu ponto de chegada. Este passou a ser o poder em si, custe o que custar – e acabou custando uma Petrobrás quase inteira.
A Constituição de 1988 deu ao Brasil, finalmente, a oportunidade de ver um Estado, no sentido pleno da palavra, em funcionamento. Quase cem anos de República foram necessários para tal: a saída de um regime escravocrata e de um passado colonial não se dá de uma hora para outra, diversos estados – oligarquias, na verdade – ainda operavam no Brasil prévio à assinatura dessa versão mais atual da nossa Carta Magna. Esse Estado é o nosso projeto, aquilo ao qual devemos nos dedicar, uma vez que não foi deveras implantado ainda.
Um Estado que não perca jamais de vista os mais pobres, fazendo de tudo para que esses venham a ter vidas dignas. E fazer tudo não significa dar de graça. Esse caminho, já vimos, implica na falência a longo prazo do próprio Estado, é um desserviço a todos, principalmente ao mais pobres. Fazer de tudo é impulsionar as forças existentes de modo a que elas carreguem junto quem está disposto a crescer. Esse é, justamente, o papel que as igrejas evangélicas têm assumido ao longo dos últimos trinta, quarenta anos, no lugar de quem? Do Estado. A lógica da milícia, tão clara no bolsonarismo, aqui também se revela: Estado, ou estados, paralelos, novas oligarquias, velhas relações sociais e de poder.
Um outro nome, mais pomposo, que é dado a isso que estou me referindo como Estado é “estado democrático de direito”, algo que nos aproxima das demais nações, nos iguala na busca de um único propósito de liberdade – e que contém, em sua fórmula, tanto a soberania popular e o primado da lei quanto um punhado de garantias individuais. O fortalecimento desse modelo deve ser nosso objetivo-mor, mas creio também ser fundamental, nesse processo, que olhemos para o nosso particular e saiamos um pouco do molde ou da rota (deliremos, em suma, levando em conta que na etimologia desse termo está um “sair do caminho”). Não sei se é o caso de inscrever isso na Constituição, mas eu penso que uma política de cotas raciais para ingresso nas universidades, que se encaixa entre aquelas conhecidas como “afirmativas”, é algo que precisamos manter por um longo tempo. Não é concebível que sejamos um estado democrático de direito com alguma credibilidade sendo, ainda, uma sociedade racista.
E o mesmo deveria valer quanto a uma sociedade machista.
Estão aí duas particularidades nossas que turvam todo esforço de sermos, de cara, justos. O Estado, nesses casos, tem que agir, não pode se omitir em nome de uma pretensa cidadania com direitos iguais para todos. Essa pode valer para alguns países europeus. Por aqui, se não houver a afirmação dessas políticas compensatórias, a “concorrência” vai ser sempre desigual – o que fere um princípio básico do próprio liberalismo. Patinaremos ad aeternum.