O PONTO EXATO EM QUE TUDO SE PÕE A PERDER
Em sua entrevista ao Roda Viva, Wagner Moura, diretor de Marighella, defendeu-se da acusação de maniqueísmo nessa sua estreia atrás das câmeras. Assisti ao filme ontem e tenho a impressão de que concordo com ele: por mais difícil que isso seja, num filme eminentemente político, não há o endosso dessa ou daquela corrente política, não há o traço de uma militância. O que há é uma simpatia por essa figura inconformada com as injustiças à sua volta, ao mesmo tempo que líder por natureza.
Em outros termos, um personagem cuja história há muito já deveria ter sido contada pelo cinema brasileiro – afinal, a sua morte se deu há mais de cinquenta anos. Digo o cinema, mas isso também se aplica a outras formas de expressão e de investigação da verdade. A bela canção de Caetano Veloso, “Um comunista” (2012), a respeito desse personagem, é mais ou menos contemporânea ao início das filmagens (2014), o mesmo ocorrendo com a biografia que inspirou Moura, escrita por Mário Magalhães. Fazendo as contas, são 43 anos, vai – de silêncio.
Como explicar isso? Acho que uma das respostas está no próprio filme, que não edulcora a violência vivida pelo personagem e por aqueles à sua volta. O Brasil é um país violento, historicamente violento, rotineiramente violento, onde se resolve muita coisa a bala, inclusive a política e suas contendas. Há cenas fortes de tortura, espancamentos, tiroteios e assassinatos, como que à revelia das demais (a partir da primeira e culminando com a última), em que temos um pai, um marido, um amigo cioso e brincalhão, um brasileiro genuinamente gentil (mas também destemido). Em suma, é como se a violência, presença palpável e obrigatória em toda narrativa séria a respeito dos acontecimentos que aqui se dão, impedisse (ou retardasse) a tematização, por prosa e verso, de vidas que poderiam ser exemplos.
Vidas são construções complexas. Consequentemente, o seu alcance justo se dá somente por meio de narrativas dispostas a adentrar as zonas cinzas ou, se quisermos, escuras. Nem tudo nelas é luz; mas o propósito de aprender junto a elas é um propósito iluminista, sim. Porém, quando a violência se faz presente, parece que tudo isso vai pro espaço, as águas se turvam, uma contaminação se dá, pondo tudo a perder. Os exemplos ficam só para os próximos, aqueles que tiveram a oportunidade de conviver de modo direto.
Agora, no caso de Marighella, tem duas particularidades que chamam a atenção. A primeira delas é que ele foi um político. Não era um mero guerrilheiro, como eu o classificava, mas sim um deputado federal constituinte, alguém que se elegeu mediante uma candidatura dentro do sistema democrático. Era um parlamentar. A segunda particularidade é a de que ele acabou virando um guerrilheiro, autor, inclusive, de um “Manual de guerrilha urbana”. Ou seja, alguém que, a certa altura, avaliou que não bastavam as palavras e que era preciso recorrer às armas e a atos em que a força física está presente de forma preponderante.
Acho que esse é justo o ponto em que o Marighella de Moura se descola do referido maniqueísmo (ou da hagiografia, uma outra acusação que ele enfrenta): a opção do uso da violência como forma de luta política não me parece que seja algo a ser subscrito por esse diretor. É (ou foi) algo do personagem do seu filme, ponto. Por conseguinte, poderíamos dizer que essa obra não sofre daquela contaminação a que já me referi – uma contaminação da qual a política dita de esquerda, infelizmente e mesmo que de forma inconfessa, não consegue escapar.