Barbie, de Greta Gerwig

Barbie era “alguém” que estava banida da nossa cultura – ou assim tendo a crer. O seu resgate por uma cineasta jovem e sintonizada com o feminismo parece estar na ordem daqueles erros meio que sagrados a que a poeta e crítica Anne Carson se refere em seu “Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso”. Com a erudição e elegância que lhe é característica, ela se reporta a Aristóteles, apresentado, liricamente, o seu pensamento sobre o uso da metáfora: ela “faz com que a mente sinta a si mesma | no ato de se enganar”, daí resultando a lição de que “não só as coisas não são o que parecem, | e por isso nos enganamos sobre elas, | mas que também esse engano é valioso.”

A trama do filme é bastante engenhosa. Em Barbieland, onde todas as “mulheres” são Barbie, mas onde também existe, como nas lojas, aquela Barbie prototípica, a própria –  protagonista – passa a apresentar disfuncionalidades cuja origem, fica sabendo, está no mundo real em que a sua “dona” enfrenta uma crise existencial. Indo a esse mundo a fim de resolver o problema, ela descobre que a pretensa dona é uma adolescente que nem se liga mais nela – se é que algum dia se ligou – acusando-a, com toda a razão, de fascista. Mas, aos poucos, surge a revelação de que a verdadeira dona da boneca é a mãe dessa adolescente. Em vez da filha, é ela que, diante de todos os perrengues que as mulheres, vítimas do patriarcado, enfrentam na vida real, está com as tais questões existenciais.

É bom que eu pare por aqui no que se refere à trama. Além de não querer estragar o filme de ninguém com spoilers, isso se deve a que eu a trouxe à baila quase que somente para evidenciar que a Barbie de Greta Gerwig parte de um ponto isento de qualquer alienação: o patriarcado e o fascismo são realidades das quais ela rapidamente se descobre partícipe; a liberdade feminina, que ela emblematizaria, é circunscrita a um mundo de pura fantasia. Urge uma desconstrução de si.

E é precisamente nessa necessidade que eu creio que reside a natureza desse filme enquanto metáfora, dentro dos moldes aristotélicos acima explicitados. Do que exatamente Barbie, o filme, é uma metáfora? O que é que o tornaria digno do título de “engano valioso”? Do que e em que medida as nossas mentes se dão conta ao topar com um “erro” tal como esse? A resposta a essas perguntas reside, ao meu ver, nas desconstruções que temos diante de nós, em nossas vidas, tanto coletiva como individualmente.

Enquanto humanos, enfrentamos, tal como a dona (adulta) da Barbie do filme, questões existenciais de ordens as mais variadas. Além do patriarcado – obviamente um problema que incide em maior grau sobre as mulheres, não deixando de nos prejudicar a todos – está o fato de que não somos eternos, que iremos morrer um dia, que tudo tem um fim. Aceitar tal condição, ao invés de acreditar que seremos capazes de, algum dia, graças à ciência, viver eternamente, bom, eu diria que está aí uma desconstrução muitíssimo urgente.

Numa perspectiva mais realista, viver para sempre talvez esteja hoje no horizonte (fictício) de poucos, pouquíssimos bilionários. Prolongar, por todos os meios, a nossa juventude, é que não. A medicina atual e as suas pretensões/promessas/procedimentos são um pacote que carece de mudanças já. Alguns autores corajosos a quem tenho dado atenção, às voltas com a própria morte, apontam para tal (de Jean-Claude Bernadet com o seu O corpo crítico, a Contardo Calligaris em seu O sentido da vida), mas talvez nenhum tenha sido tão mordaz e precisa a esse respeito quanto a cheia de vida Tati Bernardi em crônicas suas como “Doutor showman” e “Funcional” (ambos na coletânea Homem-objeto e outras coisas sobre ser mulher). Nessa última, ela aborda essa exigência que habita boa parte dos consultórios e as falas dos médicos, a funcionalidade. Diz ela, a título de elucidação: 

“Pessoas funcionais não têm fobia de comemorar o Ano-Novo em praias da moda com milhares de outras pessoas funcionais que, quase sempre, só conversam coisas meio tolas e da moda. Conversar coisas tolas, inclusive, faz um bem danado e, por isso, é uma das prioridades dos funcionais. O funcional tem como base fundante estar bem. Se você tem como base fundante estar mal, você não é um funcional.”

Lembrei muito disso ao ver a Barbie do filme, ainda em Barbieland, começar a “falhar”, sentindo, sem querer e por vez primeira, seus calcanhares tocarem o chão.

No plano individual, a principal desconstrução, ao meu ver, gira em torno de não sermos tão rígidos, de aceitarmos que tudo muda e de sermos capazes de nos adaptar às circunstâncias. Barbie é, no fundo, uma pessoa mimada (condição, lembremos, de toda boneca que se preze). Quantos de nós, diante da primeira dificuldade, não nos negamos a seguir em frente, esperando que algo de sobrenatural aconteça e reponha tudo em seu lugar, faça chover, de novo, no nosso jardim – em vez de se reinventar ou, então, criar as condições para, por outros meios, chegar onde queríamos? Quantos de nós achávamos que Barbie era um assunto superado, desprovido de qualquer conexão com as nossas vidas tão lineares, os nossos estudos tão aprofundados, sendo, no entanto, incapazes de trocar com quem está do lado – e pode, de fato, nos ajudar?

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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2 Responses to Barbie, de Greta Gerwig

  1. Norton Musa disse:

    Meeeeo Deeeuxx!!!!
    Por que tantas vírgulas?!
    Por que tantos “apostos??!
    Por que escrever assim, com tantas paradas, passasse, interrupções, inserções, citações, adendos, explicações, etc etc

    As vírgulas (interrupções) são de tal monta que mal se consegue seguir um raciocínio de leitura. A leitura fica cansativa, extenuante, quebrada, picada – assim como estou fazendo agora!

    Sei que sua intenção era comentar o filme “Barbie”, de Greta Gerwig mas, sinceramente, cá entre nós, depois da primeira dúzia de vírgulas e apostos e inserções, eu já não me lembrava mais do assunto tratado e comecei a focar “desesperadamente” nas pausas e quebras de frases e a leitura sew transformou rapidamente em angústia, incômodo e desprazer – e Barbie saiu completamente de cena. Barbie sumiu, Desapareceu e, em seu lugar, parece ter entrado uma mão viciada em vírgulas que acredita que “complicar” textos os torna mais eruditos ou importantes.

    Ledo engano!
    Barbie de Grera Gerwig, é uma comédia leve , divertida e totalmente dedpretenciosa, com enredo, figurinos e fotografia impecáveis, é um prazer assistir e é entretenimento facil e simples para todas as idades.

    “Complicar” Barbie com um texto pernóstico é equivocado e bem chato!

    Menos é mais, sempre!!!

    • Cadeajuju disse:

      Não sei como você chegou até mim. Não faço divulgação do que escrevo a não ser para um público restrito de pessoas conhecidas e você não é uma delas. Não faço parte daqueles que ficam lendo blogs e comentando (e, muito menos, criticando). Entendo que esse possa ser seu barato. E agradeço as dicas estilísticas, acho que você tem razão em muitos aspectos, reconheço que estou longe de dominar essa arte.
      Quanto ao filme, também concordo com a sua visão de que é leve e divertido, mas não de que é despretensioso. As pessoas para quem escrevo na tentativa de lhes transmitir meu apreço por alguma obra, de modo geral, torcem o nariz para filmes que são de entretenimento fácil e simples ou meramente têm aspectos técnicos impecáveis. Eu mesmo não busco nada disso quando vou ao cinema. Se eu pegasse a sua visão do que é esse filme, em nada ajudaria a convence-los a ir ver. O que seria uma pena.

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