Rodas de Gigante, de Catarina Accioly

A expectativa era grande de ver o documentário da Catarina Accioly sobre os últimos anos de vida de um dos membros do (pouco populoso?) panteão da arte candanga, o grande diretor de teatro Hugo Rodas. E o filme exibido ontem na Mostra Brasília do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro correspondeu plenamente ao que eu esperava. É um retrato fidelíssimo e, ao mesmo tempo, apaixonado, desse criador prolífico e profundo, mestre de várias gerações de atores e demais profissionais das artes cênicas da cidade.

Hugo era um ser intenso, que viveu a vida assim, até o final. Cercou-se de amigos e parceiros, os quais o ajudaram a enfrentar o envelhecimento e a doença dos anos finais. Só aí, já teríamos uma bela história. Catarina, William, Dani, Abaetê e uma imensa fila de amigos e discípulos o cercou de cuidados, retribuindo, possivelmente, o amor que ele soube dar. Ao longo de quatro anos a câmera colou nele, fazendo também parte desse zelo todo.

Mas essa bonita história documentada não seria a inteira verdade se não mostrasse, também, a força descomunal desse homem – daí, inclusive, o título: Rodas de Gigante. Uma força cujas origens são reveladas ao longo do filme. Tê-lo acompanhado em viagem à sua terra natal, o Uruguai, foi um redondo acerto da equipe já que lá ainda restam outras “famílias” suas: seus antepassados enterrados, parentes vivos, memórias, mas também parte da sua trupe teatral do final dos anos 1960. Reencontros festivos de alguém naturalmente gregário, amoroso.

Um segundo manancial de inesgotável energia passa pela cidade onde escolheu viver: esta Brasília, de cara, impetuosa, quase “exibida”. E, mais especificamente, pela Universidade de Brasília, onde foi professor. Talvez seja impossível dissociar, em seu espírito, uma da outra. A UnB é uma cidade dentro da cidade. Hugo trabalhava incansável na primeira, porém sempre mirando a segunda, o todo – construindo-a, feito um pioneiro; em seguida, melhorando-a, corrigindo-a, tudo por meio de suas criações. De certa forma, tentando honrar seu projeto civilizatório e utópico de, no dizer do crítico Lorenzo Mammì, “modernidade suave”. Sua arte, entretanto, conforme ele mesmo afirma a certa altura, era inapelavelmente política. Não teria como ser arte se não fosse: nada de diversão, mas, precisamente, “soco no estômago”.

O Hugo Rodas mostrado por Catarina Accioly é um sujeito simples, sem frescuras, que celebrava seus aniversários, cultivava suas plantas, estabelecia rituais e, a certa altura da sua trajetória teatral, ainda em Montevidéu, foi “salvo” pela dança, vertente das artes cênicas intrinsecamente ligado ao corpo – não que a palavra fosse por ele desprezada, como fica claro num momento, durante o ensaio de uma peça (dentre os muitos que aparecem), em que se dirige aos atores. Era desprovido de artifícios; xingava, muito, quando tinha que xingar. Cantarolava canções latinas, tangos, milongas, boleros, um repertório estrito e muito particular. Tinha transparência, tal como as superquadras ou a linha visível do horizonte; estava a milhas e milhas de distância do barroco.

E mais: era poliglota, falava diversas línguas, mas, segundo ele mesmo (e conforme a evidência gritante do seu delicioso portunhol), “todas mal”. Não era ali, nesse grau de sutileza, que estava a questão, mas em saber que um ser humano com fome não é a mesma coisa que outro sem. Humanidade, técnica, espírito e coração: é disso que se trata quando o assunto é Hugo Rodas. Aplausos mil à diretora e sua equipe que tão bem nos mostraram (ou lembraram) (d)isso.

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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