Anatomia de uma queda, de Justine Triet

IR MAIS DEVAGAR, NÃO DEIXAR DE CONCLUIR

Anatomia de uma queda, filme em cartaz de Justine Triet, vencedor de Cannes em 2023, é desses filmes maiores, com cadeira cativa, eu diria, na história do cinema. É um filme de tribunal, a princípio, mas extrapola esse gênero tocando em questões que dizem respeito ao matrimônio, à saúde mental e à escrita literária. Acho que aí reside a sua grandeza: nesse destemor do conjunto, no coquetel bem equilibrado conjugando temas centrais do mundo atual.

Que a diretora tenha investido, em primeiro lugar, num filme de tribunal, não é algo trivial. Esse tipo de filme apresenta personagens que perseguem a verdade com sanha, já que se trata de salvar a própria pele, fazer justiça ou simplesmente vencer uma disputa renhida – e nós espectadores vamos junto. Devemos reconhecer que no mundo atual, da pós-verdade, é uma escolha de tema atípica. 

A trama é a seguinte. Um homem, o marido, cai de uma altura considerável do chalé onde a família residia, e morre. Dado o corte na cabeça, passa a pairar dúvida de se teria sido assassinato – por parte dela, esposa – ou suicídio. Um levantamento do histórico do casal dá margem a que essa dúvida se amplie, tornando-se, por fim, acusação. Uma verdade precisa ser encontrada.

Ocorre que ambos eram escritores. Ela, de sucesso; ele, pelejando para ter mais tempo para se dedicar a esse ofício. Motivos para ressentimentos, ciúmes, discórdia, não faltavam, insuflados pela culpa que o marido sentia por não ter evitado um acidente que tinha, no passado, deixado cego o filho do casal. São essas as balizas para que se monte o circo da justiça, com seus juízes, promotores, advogados, técnicos forenses, psicólogos, testemunhas, imprensa.

Para se chegar a uma verdade, requer-se tempo. Um ano se passa entre o indiciamento da esposa e o tribunal de júri. Para nós, espectadores, também: o filme não é curto, cerca de duas horas e meia em que ficamos pra lá e pra cá a partir das provas que vão sendo apresentadas e/ou surgindo ao longo do processo. Há convicções, fundadas em “evidências”, de ambas as partes. Cada especialista ou testemunha chamado, seja pela acusação, seja pela defesa, tem suas certezas ou quase certezas a partir do respectivo quadrado e após ter estudado ou meditado o assunto em profundidade.

Mas aí é que está! Que nível de profundidade? É nesse ponto que eu acho que o filme atinge em cheio o nosso tempo presente e a sua relação com a verdade. Todos, ao que parece, querem “lacrar”, ter a palavra final. Sim, até certo ponto isso é natural: ninguém quer deixar o caso em aberto, quer-se concluir; mas, dentro de quanto tempo? De imediato? Nesse ponto é que entra, a meu ver decisivamente, o fato de a acusada ser escritora de ficção, ou seja, a força da literatura. 

Em pelo menos duas ocasiões ela desmonta conclusões que parecem óbvias, apontando, em contraponto, para um big picture, para algo menos apressado. Uma delas, inclusive, numa das melhores cenas, quando responde ao psiquiatra/psicanalista da vítima, altamente convicto: então, o que se diz entre as paredes de um consultório perante um profissional com anos de estrada (e que não se deixaria enganar facilmente), é obrigatoriamente a verdade? Não existem sutis cuidados cotidianos, externos ao divã, através dos quais procuramos preservar nossa saúde mental e a dos nossos entes próximos? Um misto de amor, esperança, sonho e paciência que, mesmo assim, às vezes não é suficiente?

Porém, não menos importante do que o exercício perene da dúvida como elemento garantidor da verdade – um traço distintivo da literatura e das artes de um modo geral – está o fato de que em nossas vidas, em certas ocasiões, precisamos concluir. Um outro diálogo marcante do filme, já perto do final, ilustra isso. Ele envolve o filho do casal, um garoto de apenas 11 anos que acompanhou todo o julgamento e, tal qual nós, espectadores, de forma sofrida e honesta ainda não consegue saber em definitivo quem tem a razão. Em conversa com sua tutora judiciária ele pede auxílio e ela não sabe como ajudá-lo, a não ser lhe dizendo que há situações que, mais do que plena convicção, demandam uma decisão. E a certeza? Tenho, então, que inventa-la, fingir que a tenho? diz ele. Não, afirma ela, é diferente. 

Como dizem alguns lacanianos, é necessário, a certa altura de uma análise, sair do gozo do pensamento. Uma hora você precisa agir, concluir, em prol da sua liberdade. Depois você se acerta com a razão.

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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