ENQUANTO NÃO SAI A INTERVENÇÃO, QUE TAL UMA (INSOLENTE) INSOLAÇÃO?
Brasília se aproxima do seu cinquentenário com uma ameaça de intervenção federal lhe pesando sobre a sua autonomia política, conquistada a duras penas. Dúvidas e mais dúvidas pairam sobre o futuro dessa cidade que nasceu numa era de revoluções: será que não teremos políticos que façam jus à ousadia que lhe deu ensejo, o velho patrimonialismo persistindo incólume em meio às suas inúmeras colunas modernas? Quão aguado será o chopp da festa do dia 21? Teremos ou não um interventor e, caso sim, quem? Ou um governador-tampão?
De concreto mesmo, até agora, no quesito comemorações, temos somente um valioso retrato seu, assinado por uma dupla “estrangeira”, Daniela Thomas e Felipe Hirsch: o filme Insolação.
Não creio que esse filme tenha sido feito com a intenção de participar do aniversário, mas pode ser que sim, posto que hoje quase tudo se atrela ao marketing. Isso, na verdade, pouco importa: o que cabe apontar é o fato de que dificilmente haverá, nessas comemorações que se aproximam, alguma outra produção cultural que chegue sequer perto dessa obra forânea e, no fundo, insolente.
Insolação não diz nunca o nome Brasília e o que os seus insolados personagens fazem é, no final das contas, contracenar com ela. Ela é, eu diria, o personagem principal desse filme de estréia dessa dupla oriunda do teatro. Dupla insolência, dirão alguns, desses dois que se metem a falar de uma cidade alheia por meio de uma linguagem idem. Mas, para quem conhece um pouco da trajetória de ambos, fica evidente a coerência: eles sempre fizeram um teatro onde o cenário conta – e muito, conforme me recordo dos geniais Avenida Dropsie, A morte de um caixeiro viajante e Não sobre o amor –; daí, nada mais natural do que ambos incorporarem esse ultra cenário que é Brasília ao rol de suas realizações cênicas.
Brasília parece falar o tempo todo ao longo do filme. Quem nela mora, como eu, vai reconhecendo cada uma das locações, primorosamente escolhidas; e é bem capaz que termine por se lembrar, como eu, do impacto que teve – caso não seja dela oriundo – quando a viu pela primeira vez. No caso em questão, com oito anos prestes a serem completados, lembro ter descido do taxi que nos conduziu do aeroporto à 308 Sul (uma das primeiras superquadras e a primeira onde morei), passando pelo Eixo Monumental, e corrido em direção a uma árvore de onde vinha um barulho muito curioso: eram as (para mim desconhecidas) cigarras e eu quase caí da árvore ao tentar pegar uma delas. Pois bem, eu diria que só faltou a esse Insolação ter mostrado um desses bichos em ação, porque o resto… está tudo lá!
Pode parecer exagero: um filme que consiga retratar uma relação que, no meu caso, já dura quase 36 anos: como “tudo”? Pois bem, trata-se das (belas) formas de que a cidade é feita, formas essas que nos remetem a uma liberdade. Quem nunca esteve em Brasília e vir Insolação saberá do quê estou falando, pois essas formas estão em todo o filme, elas falam o tempo todo. E essa fala é tão alta e poderosa que as falas dos personagens restantes só podem ser meros balbucios quase desconexos, como se todos estivessem diante de um sol, de algo impossível de suplantar. Liberdade, liberdade: isso nunca foi um canto saudável a uma cidade, eis talvez uma conclusão que possamos tirar, posto que cidades são feitas de homens – e onde há homens, há relações, que são tudo, menos livres. E, no entanto, esse é o canto que se escuta, em Brasília, o tempo todo, a partir de suas linhas; quase ensurdecedor, como o canto das cigarras no mês de agosto.
Mas seria um pouco cruel deixar de dizer que, para além da feliz direção que Thomas e Hirsch conseguiram dar à sua frutífera pesquisa cênico/cenográfica, Insolação constitui uma baita realização cinematográfica. Poucos cinéfilos atuais, creio eu, hão de ter, em suas coleções particulares de DVD’s, filmes que se originam em gente que não é “do ramo”. Muitos hão de ter, por outro lado, Tarkovski’s, rebentos de um legítimo inovador da linguagem cinematográfica, com seus longos planos e sua incrível capacidade de capturar algo que só pode ser descrito pela palavra magnetismo. Pois bem, eu digo que Insolação pode perfeitamente ser visto como um exercício, glorioso, derivado de obras-primas como Stalker ou Solaris.
Mas, no início, disse que esse filme é um retrato, de Brasília; e, agora, penso que muitos brasilienses hão de discordar dessa afirmação, não hão de se sentir tão fielmente retratados – é o que indicam a breve critica que li e os comentários que ouvi ao final da sessão. O que me remete aos famosos retratos que Picasso pintava de damas européias e que a algumas delas pareceram ser verdadeiras insolências – quando eram, na verdade, grandiosas conquistas estéticas.
(Resta-nos torcer para que os digníssimos ministros que irão decidir sobre a intervenção se dignem a assistir a esse preciso e profundo retrato da nossa dama cinquentona.)
Dá vontade ver.E você poderia muito bem fazer um filme, pois seu texto induz imagens fortes também, com muitas das quais seu compadre aqui pode se identificar. Grande abraço!