SOMOS TODOS RESIDENTES (DA TERRA?)
Todo ano, feito essas flores que florescem durante somente uma semana ou um dia, acontece de o melhor cinema do Brasil, o Cine Brasília, sofrer uma transformação que dura quase uma semana: uma porta invisível se abre no grande paredão do seu saguão e uma praça de alimentação logo se lhe acopla, o conjunto tornando-se uma grande passarela por onde desfilam personagens os mais esdrúxulos, ávidos por ver e serem vistos. É o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que, este ano, está na sua 43ª edição.
Não pretendo acompanhá-lo. Fui ver apenas o filme de um amigo e teria ido ver o de um outro, caso tivesse tido tempo. Ambos concorrem, em categorias menores. Há chances para todos e o que acontece ao longo da semana (e que não se limita ao que acontece no Cine Brasília) é uma grande oportunidade de nos colocarmos a par do estado das coisas no cinema brasileiro – e brasiliense, já que há prêmios específicos para os filmes daqui. O meu problema é uma questão de método: vou ao cinema pelo sentimento de que posso, de fato, ver algo bom; não gosto de perder meu tempo e o simples prazer de ver e ser visto não me puxa, na maior parte das vezes, para esse ou qualquer outro evento (estou ficando velho).
Pois bem, ocorreu de ser uma sexta-feira, de ter visto rapidamente uma chamada no jornal indicando para um filme diferente – tinha uma foto que já revelava uma boa fotografia – e eu acabei tendo a imensa sorte de ter ido ver Os residentes de Tiago Mata Machado.
Na apresentação do filme, quando ocorre que a equipe que o realizou sobe ao palco do Brasília e o diretor dá uma palha a respeito do que irá se ver e apresenta os seus companheiros de viagem, um sujeito, magro e jovem, o diretor Mata Machado, toma o microfone e proclama que não irá apresentar a equipe, já que ela assim deliberou segundos antes de subir (eram uns seis ou sete, também magros e também, quase todos, jovens) e que o cinema brasileiro está precisando de oxigênio. Logo, um outro, da equipe, segue-lhe no diverso e aponta para termos como excesso e invenção, ambos os expositores revelando uma segurança e uma assertividade raras a quem sobe naquele palco, principalmente se oriundo das Gerais.
Os residentes tem uma trama simples, que gira em torno de um grupo que se interna numa casa para resolver questões em comum. Sim, nada de novo, principalmente em tempos de BBB (ouvi de um amigo que ele achou, ao ler a respeito, que era disso que se tratava), só que a questão em comum é a questão da arte. São, todos, artistas, são, todos, iguais àqueles seis ou sete que subiram ao palco e não quiseram ser apresentados – claro, evidente, para quê apresentar se o que eles são e o que eles pensam iria ser revelado ao longo das próximas duas horas?
O que posso dizer é que a promessa de oxigênio se cumpre plenamente. O filme, é claro, é experimental, se insere naquela vasta linhagem de filmes brasileiros que se propõem a reflexão e não a diversão – e que, portanto, não orbitam em torno de grandes somas de dinheiro. Experimental, porém não desprovido de qualidade técnica (ótima fotografia, som, atuação), eis um primeiro ponto. Mas somente isso seria muito pouco, não seguraria ninguém, não me seguraria certamente, se não houvesse, em meio a essa excelência técnica, a mais pura ousadia e doses cavalares de criatividade.
Eu acho que festivais são interessantes porque, de fato, oxigenam: há boas produções em meio a uma vastidão de porcaria e a exibição disso tudo, principalmente no mundo dos curtas, acaba por mexer com quem com isso mexe. Assistir a dois curtas antes do longa, nas sessões da mostra principal, por exemplo, já é um exercício diferente, de comparação, de vislumbre das enormes, quase infinitas possibilidades que essa arte (a sétima, dizem) oferece. Pois bem, ocorre que, se bons curtas de fato oxigenam, é muito raro que alguém tome para si – ou tenha o talento para tal – a responsabilidade de dizer algo de absolutamente novo num longa. Sim, há os gênios, Glauberes, Bressanes, mas, fora eles – e fora José Padilha, que não é propriamente experimental – há tempos não aparecia alguém com essa capacidade.
Se há algum ponto de encontro com alguma outra proposta fílmica nesse Residentes, eu diria que esse encontro é com um dos filmes que mais me tocou na vida, que é O exílio de Gardel, de Fernando Solanas, que trata de um grupo de exilados argentinos, músicos e bailarinos e da(s) sua(s) angústia(s), que passa pelo político, pela distância em relação ao seu “chão”, mas que, no fundo, é existencial. E ponto, porque de resto o filme de Mata Machado não tem referência outra encontrável, é novo no mais amplo sentido da palavra (é do “verbo” novo, como diriam alguns chilenos engraçados).
Residentes provavelmente nunca entrará no circuito comercial. Provavelmente, os leitores desta despretensiosa crítica que vierem a se interessar em vê-lo terão alguma dificuldade em conseguir vê-lo. Às massas pouco interessa sentar para acompanhar, durante duas horas, a exploração, por parte de um grupo de artistas, das profundezas do ato de criar, das profundezas do sentimento, da crença na transformação por meio daquilo que é autêntico, belo e livre. Artistas podem ser imensamente chatos, podem se deixar levar, diante de uma câmera (ou sem câmera nenhuma), pelo próprio ego, mas eis que o diretor Mata Machado cumpriu bem o seu papel (um deles) e não deixou que, em momento algum, isso acontecesse. São artistas, sem dúvida, que estão lá na tela; e não são nada chatos.
Por último, cabe uma menção a um dos curtas que precedeu Os residentes: Braxília de Danyella Proença, sobre a poesia de Nicholas Behr, famoso poeta brasiliense. Foi uma feliz sincronicidade – não sei se proposital, por parte dos organizadores do festival – o fato termos tido, com esse alegre curta brasiliense, um aperitivo tão propício (e tão em sintonia) para essa lição que foi o filme mineiro. Surpreendente a coincidência entre as cenas em que Nicholas escava, com as mãos, o solo da cidade e as diversas cenas em que os protagonistas de Residentes lidam com esse mesmo elemento – especialmente, aquela, genial, em que um caminhão-caçamba “suga” o monte de terra na qual um das mulheres do grupo realizou uma das suas catarses. Surpreendente a coincidência de uma citação de Nicholas, de Rilke, que diz que somos todos exilados de nossas infâncias e o espírito desejante, ao máximo volume, desse filme pelo qual torço com toda a minha fé.
Obrigado pela crítica e pela literatura que nos oferece, compadre. Como você escreve bem! Um grande abraço!
Que pena que não dá pra ver Os Residentes já ! Adorei a sua crítica. Grata pelo envio.
Bjs,
Verônica
Obrigado Mário e Verônica. Beijos, abraços.