Cisne Negro, de Darren Aronofsky

UM CINEASTA NATURALISTA EM PLENO SÉCULO XXI?

Está criada uma polêmica: há os que amaram e há os que detestaram Cisne Negro, o último filme de Darren Aronofsky. Está aí um diretor, jovem, de que eu tinha poucas referências; e eu estava doido pra ver esse recém-lançado filme seu para ver o que eu acharia, afinal. O que posso dizer é que me levou a rever o seu penúltimo O Lutador, que tinha visto pela metade, certa vez que o peguei numa locadora. Acho, no final das contas, que os dois são bem parecidos. E gosto, muito, de ambos.

Os que não gostaram de Cisne vão de uma preguiçosa acusação de cafonice a uma  mais elaborada, que diz respeito ao exagero alucinatório que toma conta da protagonista e do filme, a certa altura. O que ocorre, de fato, é que a proposta do filme é a de mostrar o drama de uma jovem bailarina que faz parte de um importante corpo de balé clássico e que luta por conseguir o papel principal da nova montagem do grupo, o renomado Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. Tudo estaria bem, as chances dela conseguir o papel sendo altas, não fosse pelo fato de o diretor ter encasquetado que a mesma bailarina deveria desempenhar ambos os papéis de Cisne Branco e Cisne Negro. Isso – e principalmente o desafio pessoal de dar corpo à sensualidade do segundo e mais sedutor dos “cisnes” – faz com que ela se veja indo além dos seus próprios limites e comece a surtar. E nós, espectadores, somos convidados a ir junto nesse surto, tendo o trabalho, junto com a guerreira bailarina, Nina (vivida pela ótima Nathalie Portman), de distinguir o que é alucinação e o que não é.

Aronofsky é um cineasta que cuja temática, eu diria, deriva de uma corrente artística do século XIX – a respeito da qual estou, coincidentemente, lendo um belo ensaio do historiador Jorge Coli – denominada “naturalismo”[1]. É claro: como o cinema ainda estava por ser inventado, essa corrente teve os seus principais lances sendo jogados nos campos da pintura e da literatura. Ela teve, conforme noticia Coli, uma vida difusa, não se concentrando em um único lócus geográfico e não fazendo alarde algum, a tal ponto de só ter sido reconhecida muito tardiamente, no século XX e, ainda assim, sob controvérsia. Fundamentalmente, ela consiste no esforço de retratar o mundo profissional, de fazer um inventário dos diversos meios pelos quais os homens ganham o seu pão de cada dia: as ferramentas de que dispõem, seus trajes, sua condição. A arte naturalista é uma arte que lida com tipos sociais e esses tipos se definem a partir de suas profissões, não a partir de traços psicológicos individuais ou a partir de alegorias já prontas e sancionadas pelo establishment cultural.

Pois bem, é isso o que Aronofsky faz. O Lutador é o retrato cru e cruel de um lutador de catch que envelhece e se vê às voltas com um acerto de contas consigo mesmo, diante da vida “desregrada” que teve. Comovedor. Cisne Negro também narra um desregramento, quando mais não seja pelo fato de que Nina é levada a enfrentar as leis impostas por uma mãe frustrada e autoritária. Em ambos os casos, o que conduz a esse desregramento é a profissão de cada um. E a convergência entre um e outro filme se aprofunda pelo fato de ambos retratarem profissões que estão dentro do showbusiness.

Eu creio que Aronofsky, naturalista ou não, é um cineasta que veio para incomodar. Um terceiro filme seu, A Fonte da Vida, é um que muitos podem até julgar patético, com a sua pretensão de sincronizar três tempos e três espaços em torno da temática da morte, da tentativa de superar essa que é a mais segura das certezas. Nem mesmo os belíssimos efeitos especiais desse filme são suficientes para aliviar a sensação de exagero e até mesmo de delírio megalômano. Somente um aspecto, creio, em retrospectiva, o salva, que é justamente o fato de o protagonista ter o quê? Uma profissão, a de médico – que vê a sua jovem e bela mulher ser gradativamente consumida por uma doença terminal. Aí, sim: o delírio e a megalomania do filme são perfeitos irmãos siameses do delírio e megalomania de muitos dos expoentes dessa profissão, são o seu retrato fiel – ou, pelo menos, uma tentativa disso.

E o incômodo desses dois mais recentes filmes que lidam com profissões do mundo do espetáculo, onde reside? Pois bem, eu acho que – e eis inclusive uma das explicações que encontro para a forte rejeição de Cisne Negro – no apego que se tem ao próprio mundo do espetáculo, que, nos filmes, é desconstruído. É muito mais fácil, e é muito mais isso o que as pessoas esperam, ser o espectador do Lago dos Cisnes, ou de qualquer luta de catch, do que o espectador daquilo que acontece nas coxias, das disputas e angústias que lá se dão. Por outro lado, como é que um reles espectador de balés ou de catchs vai, um dia, sequer sonhar em ser testemunha da transformação, do empoderamento (que chega a beirar a imortalidade), que só o mundo do trabalho pode oferecer – e que os filmes de Aronofsky cuidam de retratar, com tamanha fidelidade que até mesmo os delírios e as fantasias dos retratados neles aparecem e se confundem com a própria narrativa?


[1] “Pintura naturalista”, in Coli, Jorge; O Corpo da Liberdade; São Paulo, Cosac&Naify, 2010, pp. 285-294.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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