Rio, de Carlos Saldanha

A VIDA PODE SER MARAVILHOSA

Fiquei sabendo que José Padilha, diretor dos Tropa de Elite (já comentados aqui), vai fazer o próximo Robocop. Boto fé, muita fé, porque o cara é uma fera, sem dúvida. Mas o que me leva a abrir esta crítica é o sucesso, nas telas, de um outro brasileiro, Carlos Saldanha, diretor do longa de animação Rio, com recente estréia. Saldanha tem uma trajetória oposta à de Padilha: seu sucesso se deu a partir de um trabalho fora do país, nos estúdios norte-americanos de animação, com a direção artística dos A Era do Gelo, e agora chega ao seu país de origem como um produto que cabe ao público brasileiro julgar, eu diria que mais do que a qualquer outro público, porque aborda precisamente essa cidade, o Rio de Janeiro, esse emblema da brasilidade – que, coincidentemente, foi o “trampolim” de Padilha para o “mundo”.

E enquanto (também) brasileiro, eu acho que Rio é uma enorme conquista para o pensamento daquilo que somos, para a nossa antropologia. É um filme que teria tudo para ser ofensivo à assim chamada brasilidade. Primeiro, por fazer uso de uma técnica que não nasceu aqui, nos nossos parcos estúdios (se é que eles existem). Segundo, porque se espraia sobre um território que não é meramente geográfico (como foram as geleiras ou poderia ser a floresta amazônica) mas emotivo –  qual é o brasileiro que, mesmo nunca tendo ido ao Rio, não tem essa cidade em algum ponto do seu DNA, não a tem como fonte de orgulho, como prova de que a vida é (ou pode ser) maravilhosa? –; porque toca num símbolo que se encontra, por vezes e de fato, em muitos aspectos, combalido. O desenho animado e os filmes de animação têm um passado no qual não é rara a presença dos estereótipos e até mesmo do preconceito, coisas a que, até algumas décadas atrás, alguns analistas davam o nome tenebroso de “ideologia”.

Mas eis que Saldanha dá um triplo escarpado por sobre tudo isso e por sobre a memória de Zé Carioca, aquele papagaio cordial que já nos representou na “orquestra das nações” e lança ao mundo a história de Blu, uma ararinha azul macho que é capturada ainda bebê numa floresta que só pode ser a da Tijuca e é transportada como contrabando para o Minnesota. Lá, ele é interceptado por uma garota americana que o acostuma a todos os confortos de uma vida doméstica, inclusive à inaptidão para o vôo. Pois bem, acontece que Blu é reconhecido por um ornitólogo brasileiro que afirma ser ele o último exemplar macho de sua espécie e que propõe a ele e à sua dona, agora uma mulher, uma viagem ao Rio para ele se acasalar com a última ararinha azul fêmea existente no mundo. A viagem acaba acontecendo, Blu passa a conhecer Jade, a ararinha, e o seu berço, a cidade, o mundo do qual ele foi tirado.

E que mundo é esse? Bem, eis aí a grande questão. É, por acaso, o mundo da cordialidade? Da malandragem? Do turismo sexual? De modo algum. Saldanha vai deixando cair todo e qualquer estereótipo, toda e qualquer imagem preconcebida e possivelmente encapsuladora – às vezes até brincando com isso, como quando nos induz a achar que Jade seria uma “presa” fácil para o inocente nerdzinho gringo em dias de garanhão, para logo nos revelar a fêmea arguta e sedenta de liberdade que ela, de fato, é – e vai nos revelando uma suavidade, uma delicadeza, uma sutileza que passam pela música, pelo gestual , pela dança e pela cor. Algo único, genuíno, refinado, que explode, em certos momentos, em exuberâncias – naturais, como no caso da paisagem, artificiais, como no caso do desfile das escolas de samba. É fácil reconhecer o Brasil real nesse filme: ele não aparece como ideia, mas como corpo, como visualidade e sonoridade únicas. Ouso dizer que se fosse possível ao cinema ter cheiro, Saldanha também cuidaria de que seu filme exalasse os mais variados perfumes brasileiros.

Enquanto escrevo estas linhas, me vem à lembrança um filme que vi neste Carnaval passado (e sobre o qual gostaria de ter escrito, coisa que acabei não fazendo): o documentário O Samba que Mora em Mim, de Flávia Guerra-Peixe, uma proposta exitosa de retratar o universo do Morro da Mangueira e do samba que lá se faz. Agora, eu diria que esse filme e o Rio de Saldanha, são iniciativas muito próximas. Flávia Guerra-Peixe também consegue fugir dos estereótipos, tão fáceis, pela mesma via da sensibilidade, da atenção ao que é singular e que só pode passar pelo corpo: pelo olho de quem vê, pelo ouvido de quem ouve, pelo corpo de quem se faz ser visto e ouvido.

Mas, tenho que confessar que uma das coisas que me fez concatenar estas impressões a respeito de Rio foi ter escutado, no dia seguinte ao filme, o belíssimo álbum que o soprista Carlos Malta gravou a partir da obra de Pixinguinha.

Pixiguinha, todos sabem, é uma fonte inesgotável de certeza a respeito do divino e do sublime. Malta, por sua vez, é um carioca que ama o Rio e um profundo pesquisador da brasilidade que, certa vez, num dos diversos shows que dele já vi, fez o público, ao final, sair entoando  uma melodia de Radamés Gnatalli que evoca um Rio de Janeiro polido, refinado, civilizado à sua própria maneira, com as pessoas se cumprimentando alegre e educadamente ao longo das suas avenidas e ruas. Um Rio muito próximo do de Saldanha; uma alegria, no final desse show, muito parecida àquela que Rio provocou em mim.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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