Brasília, uma arquitetura familiar, de Débora Amorim

UM PARALELO A MAIS

Uma amiga minha, Lara Amorim, professora de antropologia da UFPB, me deu de presente um livro do qual ela participou como curadora e autora de um texto de apresentação; um livro sobre Brasília, cujos (outros) autores são, na qualidade de fotógrafos – é um livro de fotografia –, a sua prima Débora Amorim e o seu tio Márcio Amorim. É um livro feito em família, a partir do material inicial deixado pelo fotógrafo amador e pioneiro Márcio, que registrou momentos da história da família que ele constituiu em Brasília, bem como momentos da história da própria cidade. Esses registros, por sua vez, são postos em paralelo ao trabalho de sua filha Débora, profissional da imagem atuante na capital dos dias de hoje. O livro chama Brasília, uma arquitetura familiar e traz algo de muito novo para o cenário da historiografia de Brasília, principalmente aquela feita a partir de imagens.

Atualmente, estamos tendo, aqui em Brasília, no recém-inaugurado prédio da Câmara Legislativa, uma exposição sobre a cidade e sobre seus principais personagens e monumentos. É uma mega exposição que já esteve em Madri e Lisboa e parece que segue para a França na sequência. Tem um baita de um patrocínio, fruto do trabalho de uma jovem produtora cultural: Danielle Athayde. Trata-se de um trabalho que tem de tudo: desde uma maquete da cidade, dona de uma conturbada história, até aqueles personagens que sempre constam –  JK, Pinheiro, Sayão, Niemeyer, Costa, Bulcão, agora acrescidos de Le Corbusier, e os fotógrafos Fontenelle, Manzon e Gautherot –, passando pelo trabalho de um fotógrafo (forâneo) contemporâneo e de quatro excelentes artistas da cidade. Algumas coisas, nela, para mim, são novas (o trabalho desse fotógrafo, alguns documentos raros e valiosos, dois quadros de Athos Bulcão, com seus azulejos), mas, no geral, considero a exposição uma repaginação, bem feita certamente, de coisas que já vi e, principalmente, de coisas que vejo todo dia, coisas que eu até estou meio cansado de ver: prédios e poder, ou os prédios do poder e o poder dos prédios.

O livro dos Amorim, por sua vez, apresenta esse outro lado de tudo o que diz respeito ao poder, o lado da subjetividade, como bem colocou a própria Lara, quando me resumiu a proposta. Em geral na iconografia brasiliense, esse é o lado que sempre aparece ou pequeno, diante da grandiosidade da proposta, ou anônimo. Já Brasília, uma arquitetura familiar nos dá nomes, nos dá rostos, momentos, lugares; e todos esses elementos nos falam muito diretamente, porque são configurações de sonhos bem concretos: ter uma família, ser feliz, construir coisas, trabalhar.

Certo, os poderosos também sonham – é o que está patente no célebre  olhar de JK, nas expressões de Niemeyer, no gestual de Lúcio Costa –, mas até quando vamos continuar a achar que o sonho de todos tem que ser sempre o sonho por tabela desses sonhos, digamos, primeiros? Eu acho que Michel Focault foi alguém que nos alertou muito para esse perigo quando quis estabelecer as bases de uma nova filosofia em torno não de uma verdade, mas em torno das relações entre os sujeitos e o poder. O poder é algo que emite verdades e cabe a nós, sujeitos, ver se essas verdades são mesmo boas para nós, nos trazem benefícios ou querem simplesmente nos aprisionar, nos reduzir, manipular, nos cooptar.

Os sonhos do poder, tal como são aqueles com que nos deparamos na exposição organizada por Athayde, são do tipo que nos levam a esquecer os escândalos de corrupção recorrentes, os desperdícios de dinheiro público e as agruras vividas cotidianamente, ao conviver com ele, poder. O cheiro podre que se sente a cada esquina inexistente, o cheiro da arrogância e da prepotência dos que tem algum naco, ainda que mísero, de poder, meio como que é suavizado quando nos lembramos das belas intenções dos próceres e dos demiurgos, como se lá, nelas, estivesse uma parte da nossa verdade – e a verdade, fomos ensinados, é sempre algo que deve nos acalmar. Esse conjunto todo tende, em suma, a nos dessubjetivizar, a nos tirar da capacidade que temos de construir nossa própria identidade, nosso próprio caminho. Por isso, é premente, é vital, que o outro lado da história seja contado, seja exposto.

Evidentemente, não se trata de postular algo do tipo: a família é a solução, o caminho para o impoluto, em oposição à decrepitude do poder. Nelson Rodrigues é um que nos mostra muito claramente, por meio de toda a sua obra, o quanto esse caminho é enganoso. A questão parece mais passar pela corajosa exposição de nomes e de afetos, que não têm medo de serem revelados: Márcio, filho de José e de Quinquinha, que se juntou a Jodette e que, pais de Marcus e Débora, construíram, com esforço, mas também com alegria, em Brasília, junto ao poder, uma casa, um lar, uma família. Arquitetaram, como bem lembra o título do livro e o texto que o apresenta, algo, que é único, singular e muito belo, tão belo quanto (ou mais) os formosos prédios a que estamos acostumados.

Um dos mais belos textos de Foucault, dentre os que tocam diretamente nessa questão da subjetividade perante o poder (e eu diria que dentre todos os que ele escreveu), intitula-se “A vida dos homens infames”. Ele nasceu de um projeto (inconcluso) que esse pensador tinha de fazer um livro a partir dos registros administrativos dos homens e mulheres que, no século XVIII, tiveram algum relacionamento com o Hospital Geral da Bastilha; existências que ainda que não valerão “jamais a menor passagem de Tchekhov, de Maupassant ou de James” teriam “balançado”, nele, Foucault, “mais fibras do que aquilo que ordinariamente chamamos de literatura”. O que acontece com esses registros, diz ele, é que evidenciam um ardor, uma energia e até mesmo uma violência semelhante àquela de “partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto elas são tanto menores e difíceis de discernir”.

Eu não ousaria colocar a saga dos Amorim no rol da vida dos homens (e mulheres) infames da história do que quer que seja, até porque esse é um termo que se liga à desonra e a desonestidade, algo que, até onde sei, passa muito longe da história dessa família. Mas, se por infâmia entendermos uma alegria de viver, um ardor e uma energia que destoam por completo das exigências de um mundo estritamente racional e obediente aos desígnios do poder, então, creio que os Amorim, junto com uma imensa maioria dos cidadãos brasilienses, são, como mostra esse importante livro, uns belos de uns infames. E a maior prova disso é o trabalho de Débora Amorim, que, dentre todos os assuntos que a um fotógrafo é dado escolher como tema, escolheu a criação artística, ou seja, aquilo que sempre foi e sempre será o baluarte da luta contra as estupidezes do poder.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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