NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE GÊNERO ARTÍSTICO…
É difícil falar sobre o último Almodóvar, A pele que habito, por dois motivos. Primeiro, porque a trama tem uma surpresa, que é um dos seus elementos cruciais e que não cabe “estragar”, para aqueles que ainda não o viram. Segundo, porque dizer algo sobre o cinema de Almodóvar parece uma tarefa que requer um arsenal mais robusto, por parte daquele que a isso se aventure, do que aquele que, até agora, tenho sido “forçado” a usar em minhas críticas. Digo “arsenal”, porque percebo que isto de escrever, sobre cinema ou sobre o que seja, é algo próximo a uma atividade bélica, em que um certo “decifra-me ou te devoro” não deixa de se fazer presente; e eu tenho a sensação de que essa esfinge manchega chamada Pedro Almodóvar requereria, de minha parte, algo mais próximo de um ensaio, tal a magnitude e a importância da sua obra, a fim de evitar a sua mordida. E digo “forçado”, tal qual uma criança que brinca com seus soldadinhos de chumbo – que, às vezes, conforme o poderio do inimigo, necessitam de uma certa injeção de superpoderes –, já que isto aqui é um afazer com o qual tento me divertir, acima de tudo.
Mas dado que a ideia aqui não é a de escrever ensaios e sim críticas, coisas mais breves, que motivem (ou não) o leitor a sair de sua rotina e desfrutar de algo que me parece valer a pena (ou não), vamos ver se é possível isso que acima está proposto.
O que primeiro precisa ser dito é que me parece que A pele que habito segue com perfeição essa trilha sinuosa que é o conjunto dos filmes desse cineasta, uma trilha que percorre os lugares – e os estados, no sentido de situações – mais diversos dessa parte, a Espanha, dessa península que, ligada à Europa, como já notou certa vez Foucault, parece lhe ser uma espécie de inverso, a Península Ibérica. Há muita gente que vê os filmes de Almodóvar – e que, supostamente, gosta deles, já que “reincide” na sua assistência – exclusivamente porque eles retratam – de maneira insólita, é certo, mas adequada – coisas que acontecem nesse canto preciso do mundo: seus filmes atendem, eu diria, a uma necessidade que muitos têm, em especial nestas latitudes e longitudes que já foram colônias espanholas e portuguesas, de se informar “a quantas anda” a (ou essa) “metrópole”, a origem de tanta coisa (e o contraponto de tantas outras). Essas pessoas, cuja razão eu não tiro, se verão plenamente atendidas por esse mais novo Almodóvar, que se passa na bela Toledo, onde um cirurgião genial e, ao mesmo tempo, perturbado ao ponto de ser diabólico, mantém uma clínica de ponta – e onde ocorrem coisas que… só vendo…
A despeito, contudo, da importância, digamos, cultural, daquilo que acontece na Espanha atual, há uma outra questão que me parece perpassar o cinema de Almodóvar com grande peso e que diz respeito exclusivamente à arte cinematográfica – e essa questão me veio a partir de A pele que habito. Trata-se de uma preocupação com as possibilidades que essa arte oferece ao artista. Toda arte tem o seu aparato técnico, a sua tecnologia, que é feita de ferramentas e suportes. Com o cinema, não haveria por que ser diferente: há o som, há a imagem, que são viabilizados, claro, por equipamentos, películas e bandas mais ou menos precisas e capazes, mas também há uma série de outros elementos, como os atores, o figurino, a locação, o cenário, os efeitos especiais, e o roteiro… Em suma, um conjunto bem vasto de instrumentos com os quais é possível se brincar, experimentar, jogar, dando vida a essa arte, evidenciando, a cada passo, que ela não é algo acabado, definitivo, pronto. Trata-se, voltando aos filmes de Almodóvar, de realizar algo como uma expansão constante dos limites dessa forma de expressão.
No caso específico de A pele…, creio que ao menos duas são as expansões realizadas. A primeira tem a ver com a construção de uma zona espacial absolutamente singular, que é a clínica desse cirurgião vivido por Antonio Banderas. Situada num antigo casarão toledano, construção maciça de pedras centenárias que se faz munir dos mais recentes recursos da tecnologia de segurança/vigilância e comunicação, esse estabelecimento, que é também o lar desse médico, é um construto que impacta. As suas portas que se fecham de um lado só, os seus elevadores e suas câmaras e telas monitoras, bem como os seus quartos e subterrâneos providos de todos os utensílios mais indicados a cada necessidade (a mangueira bem no lugar onde se dá banho, o aspirador de pó cujo cano sai do rodapé) nos colocam dentro de uma espacialidade um tanto aprisionante, onde tudo parece que é previamente planejado. Talvez estejam aí os ecos de uma convivência mais próxima, por parte da Espanha, com o restante da Europa, convivência essa que já completa sua primeira década – ao menos no que diz respeito à unificação monetária.
A outra expansão tem a ver com a proeza roteirística de fazer, de forma verossímil, com que dois atores, absolutamente diversos um do outro, vivam um único e mesmo papel, sejam uma única e mesma pessoa/personagem. Sei bem que aqui me aproximo perigosamente do estrago que seria a revelação da surpresa-mor do filme, mas não há como deixar de reparar que Almodóvar conseguiu nesse filme algo que muitos já tentaram, sem ter logrado sucesso – o mais notável desses tendo sido justamente um espanhol, Luis Buñuel, que no seu Esse obscuro objeto do desejo, pôs as belas, e tão diferentes entre si, Ângela Molina e Carole Bouquet para representar o papel da estranha jovem que deixa Fernando Rey em apuros.
E é precisamente essa evocação do mestre Buñuel que me inspira a tecer um último comentário que diz respeito não mais a A pele… mas remete de volta ao conjunto da obra de Almodóvar: o de que não parece restar dúvida de que há entre esses dois geniais criadores uma afiliação, que faz com que Almodóvar seja o legítimo continuador da linhagem surrealista no cinema, linhagem essa inaugurada pelo primeiro.
Sim, é claro, o surrealismo foi um movimento que teve inúmeros componentes e que, em linhas gerais – e digo isso baseando-me no insuperável estudo de Eliane Robert Moraes intitulado O corpo impossível, que aborda esse tema –, representou uma reação à tentativa empreendida, em meio ao advento da burguesia, de dar uma cara definitiva à figura humana – a cara de um ser racional, que carrega um corpo como se fosse um fardo –, mas é preciso notar que essa reação intelectual não teve em nenhum outro lugar um solo tão propício ao seu desenvolvimento como o teve na Espanha. Daí que se bem que não tenham saído de lá os grandes teóricos desse movimento, uma boa parte dos maiores criadores surrealistas foram espanhóis.
Mas, a pergunta que cabe, neste momento, é: e quem foi que disse que o surrealismo morreu? Talvez, o surrealismo, com toda a ligação que tem com o desejo (eis o nome, inclusive, da produtora de Almodóvar, “El Deseo”), uma vez formulado, seja tão imortal quanto o é a Ibéria. E, talvez, alguém que, como Almodóvar, sendo exímio cineasta, filme aquilo que acontece nessa península, não tenha como não ser surrealista.
Gostei muito da sua crítica, que teve a felicidade de falar de quase tudo sem tirar a surpresa, fundamental no filme. Um achado essa sua ligação do Almódovar com Buñuel. Nunca tinha me ocorrido e acho que você acerta. Achei esse filme do Almódovar bem diferente dos outros, sem aquele constante toque de humor e a leveza com que trata os temas mais escabrosos. Nesse, não. O filme é duro e é duro. Não faz concessões. Só quanto a música é La petite fleur lembra o velho Almódovar. Um abraço Cléa
Obrigado, Cléa, companheira blogueira, que bom que vc. gostou.