UM ANTÍDOTO PARA OS DIAS ATUAIS
Há alguns anos atrás, um amigo meu, diante de uma pergunta provocativa, a mim dirigida por parte de uma interlocutora em comum, sugeriu-me rápida e discretamente que eu deveria “surtar”. Em outras palavras, diante do aperto, uma saída seria fingir um surto psicótico ou coisa parecida. Achei engraçado e, claro, não segui o conselho, pouco afeito que sou à encenação. Conto esse episódio como forma de iniciar este comentário a respeito de um filme intrigante e genial que acabo de ver: Os idiotas, de Lars Von Trier, que integra uma mostra que ocorre, com os filmes desse diretor dinamarquês, até o final do mês, aqui em Brasília – chance única de deleite cinematográfico, da qual já tirei proveito, também, ao rever o igualmente estelar Ondas do destino.
A encenação à qual me furtei naquele então está no centro desse filme antigo (1998) de Von Trier, que muitos enxergam apenas como uma manifestação emblemática dos preceitos do movimento de que esse diretor participou – fundando-o – denominado Dogma 95 – com direito a manifesto, certificado e tudo. Sim, é instrutivo ver como a aplicação dessas regras que limitam e naturalizam (ou desglamourizam) a mise-en-scène, abolindo iluminações artificiais, som que não o ambiente, uso de trilhos e demais aparatos para a condução e sustentação da câmera servem para a produção de um descondicionamento do olhar do público no que diz respeito ao que ele espera quando vai ver um filme. Já abordei um pouco esse assunto no texto que escrevi, alguns posts atrás, sobre o filme Melancolia, desse mesmo diretor, só que enfatizando, então, os aspectos roteirísticos ou mesmo temáticos (a quebra de ilusões quanto à possibilidade da candura). Mas essa questão metodológica, quase técnica, não é, nem de longe, o que há de mais interessante em Os idiotas.
Como já disse, a questão principal desse filme é a encenação: trata-se de um grupo de amigos, de ambos os sexos, que se juntam numa ampla casa, que o tio de um deles pôs à venda numa pequena localidade dinamarquesa, para fingir, perante o resto da sociedade local, serem débeis mentais. Vivenciam uma autêntica comunidade alternativa que, internamente, experimenta a idiotia individual, explorando “o idiota que há dentro de cada um” e, externamente, promove passeios em que somente um dentre eles finge monitorar o resto, que alopra, na piscina pública, na visita a uma fábrica, no restaurante, no café, no parque, na vizinhança. Cada uma dessas performances, pautadas pelo improviso, num momento posterior quando o grupo se recolhe ao seu centro de operações, é discutida grupalmente, analisada e avaliada, recebendo uma nota. Avalia-se não somente o impacto causado, o grau e o refinamento do deboche, mas também o retorno que esse estilo de vida traz, para cada um, no que tange à felicidade pessoal. E assim a coisa toda vai, configurando uma inovadora e desafiadora experiência estética, que, inclusive, tem a capacidade de incorporar novos adeptos, como vem a ser o caso da surpreendente personagem, Karen, que abre o filme.
No âmago dessa experiência está, evidentemente, uma ideologia – que é assim tratada no próprio filme, quando ele entra, não se sabe até que ponto de propósito ou de forma “involuntária”, tipo sem-querer-querendo, no modo “documentário” –, anti-establishment, anti-burguesia, anti-classe-média. O mundo, com toda a sua seriedade, no fundo, ri e caga-e-anda para cada um de nós; então, vamos ver o que ocorre quando, pelo surto, pela encenação da desrazão, nós lhe devolvemos esse mesmo desprezo. Eis a proposta, que chega a se equivaler, na sua clareza, a um manifesto e cuja aplicação (ou não) de critérios é até mesmo passível de ser certificada, como nos próprios filmes do movimento Dogma 95.
Eu acho que tudo isso nos fala, hoje, quase quinze anos após a sua realização, quando, justamente, nos deparamos com mais uma versão do enfadonho e indigesto Big Brother Brasil (BBB). Esse programa televisivo, tanto quanto diversos outros de sua laia e formato, apresenta como justificativa a de ser uma experiência proto-sociológica, um jogo com laivos de skinnerismo, misturado a quaisquer outros ingredientes encontráveis em laboratórios de psicologia. Alguma contribuição, portanto, para o aprimoramento humano, para o conhecimento da raça ou do gênero de que fazemos parte poderia dali brotar; por isso estaria justificada a sua audiência. Só que, quando posto em face a uma experiência tal com a do filme de Von Trier, fica patente o engodo, o equívoco, para dizer o mínimo.
O que é que acontece? Bom, precisamente a diferença que existe entre estar ou não na condução das coisas. Na experiência Von Trier, é o grupo quem modula tudo, percebendo e refletindo a respeito dos resultados, tanto externos (é onde nós entramos, também, como espectadores do filme) como internos (espirituais), das suas performances. Na experiência BBB, temos um grupo de pessoas que se exibem comportamentalmente, que permitem que instrumentos captem seus movimentos, suas falas e reações em face ao restante do grupo para, assim, catapultar uma imagem, uma “personalidade”, um “si”, que acaba se tornando uma evidência em nível nacional. Constrói-se, assim, uma “celebridade”, que tem todos os apetrechos aparentemente necessários para configurar um sujeito. Mas que, no fundo, é um produto; que raramente foge ao que é conveniente e esperado. E nós, espectadores disso, junto com essas celebridades, continuamos na posição de verdadeiros idiotas, com Marinhos, Bonis e Biais a rir das nossas caras.
Um exemplo nítido dessa diferença ocorre quando o grupo de Os idiotas resolve, depois de tudo já ter feito em termos de idiotia, ver o que seria uma suruba de nécios; e a suruba de fato ocorre, como uma parte perfeitamente coerente com todo o conjunto de performances que são retratadas e encenadas nesse filme (poder-se-ia dizer que o filme em si é uma mega-performance). Quanta diferença em relação a toda essa infantil e infeliz chanchada relativa ao eventual “estupro” em meio aos edredons globais!
E, assim, podemos mais uma vez concluir que somente a arte traz consigo mais liberdade; enquanto que a ciência, por mais bem intencionada que seja ou esteja, acaba sendo um mero instrumento, um mero verniz na mão daqueles que não querem que saiamos do lugar. (E vamos ver se da próxima vez eu dou conta de surtar).
Andrés,
Gostei do seu tx, boa comparação que coloca os limites ou a negação deles em cada caso, mas por que no final opor arte e ciência ? A globo e bbb seriam então o equivalente à ciência ? A ciência é sim uma grade que limita o pensamento, mas também uma possibilidade de romper limites, mudar a direção. Os grandes cientistas não são justamente os que mudaram o rumo e nos libertaram de teorias obsoletas, promoveram uma percepção diferente das coisas ?
Boa, Susana. Desde o texto de Inhotim venho citando a ciência como um elemento que pouco nos auxilia e me indagando até que ponto não estou sendo injusto, na mesma linha do que vc. coloca. Quando reflito a respeito, contudo, penso que existe a condução das coisas, a política, o poder; e que a ciência não tem sido capaz, até hoje, de levantar a voz frente a ele, onde quer que ele se manifeste. Acho que talvez nem se proponha a tal, e talvez isso seja até bom. O problema é que nos vendem a torto e a direito a ideia de que a ciência é capaz de tudo, inclusive de resolver as intrincadas questões humanas (o BBB bebe um pouco dessa fonte). É aí onde eu acho que só a arte, que é a única que consegue dialogar com esse terceiro elemento, ir até o fundo e lhe dizer: qual é? Parece-me que o momento agora é, diante do refinamento das tecnologias condutivas, de crucial embate, onde a questão ética certamente terá destaque (toda essa boa cobrança por um ética na política); e aí, quando isso acontece, os cientistas costumam sair de fininho, fingir que não é com eles, ao passo que os artistas, creio que esses têm muito mais traquejo nessa seara. Talvez seja um assunto deles (ou nosso) por excelência.
Agradeço enormemente o teu comentário (e o de quem mais o faça ou tenha feito), que abre um diálogo aqui neste espaço; para que a balbúrdia não seja uma monobúrdia! Abraço.