DA PÉRSIA, UM FILME MONUMENTAL
Um filme é como um castelo de cartas? Sim, no sentido de que requer cuidados muitos, uma atenção a cada etapa, aos seus diversos aspectos. Mas, não, porque um filme pode ter coisas ruins e ainda assim se sustentar. O raio é quando um filme não tem nada de bom para apresentar. O outro dia me aconteceu, com o filme Hannah, que peguei na locadora. Estrelado por Cate Blanchett, tinha uma credencial – essa – forte, mas eis que acabei dando com os burros n’água com essa aposta/escolha, que gira em torno de uma adolescente que é treinada pelo suposto pai, ex-agente secreto, para enfrentar quaisquer ameaças por parte do serviço secreto americano, com Blanchett à frente, do qual ele havia desertado: fiquei torcendo até o final para que algo salvasse o filme, mas nada se apresentou nesse sentido. Ele simplesmente é um amontoado de infelicidades.
Afortunadamente, alguns dias depois fui assistir a A separação, filme iraniano de Asghar Farhadi, que irá concorrer ao Oscar de melhor estrangeiro e roteiro original e que levou alguns ursos em Berlim. Tal como o fiasco Hannah, esse filme trata, para não dizer que ele trata de tudo ao mesmo tempo – coisa que também pode derrubar um filme, caso não haja extrema maestria – , da educação de uma criança/adolescente por parte de um pai.
A vida pode se apresentar como uma série de desafios. Vencer esses desafios é o que a maioria de nós tentamos fazer e é assim que uma palavra ressoa em nossas vidas com especial recorrência: luta. É o que o filme retrata: um pai que enfrenta, simultaneamente, uma esposa que quer enquadrá-lo com uma ameaça de divórcio, um pai com Alzheimer, uma sociedade como a iraniana e, como se não bastasse, uma empregada recém contratada que o acusa de tê-la agredido num momento, único ao longo de toda a fita, de fúria, ocasionando-lhe a perda do seu bebê de cinco meses de gravidez. É uma dose pra leão, que, no entanto, ele processa com toda a elegância, toda a calma, decidindo, mexendo sábia e soberanamente as suas peças no tabuleiro, porque há um propósito maior, um gosto acima de qualquer outro: poder repassar à sua filha princípios bons, uma maneira correta de agir, de se relacionar, em suma, uma ética.
E o melhor de tudo é que, das ameaças que o cercam, nenhuma é caricatural. Isso faz com que, a cada cena, penetre em nós uma noção de profundidade, como se um parafuso estivesse sendo apertado a cada lance, pasmando-nos, prostrando-nos, num efeito inverso daquele, descrito acima, em que procuramos encontrar algo que preste: aqui, a procura, também em vão, é por algo que não funcione, que não seja o mais preciso retrato de uma realidade ou, mesmo, de uma condição (humana).
A mulher que deseja o divórcio não é uma doidivanas (como, por exemplo a de Biutiful, que tem um tema similar), é simplesmente alguém que está cansada da luta, que acha que há vida fora dela – uma hipótese pouco plausível, mas quem sabe, no fundo, onde reside a felicidade e qual a sua real faceta?
A sociedade iraniana não se apresenta em nada como uma sociedade diferente das nossas, a não ser pelo fato de nela existir um serviço de tele-ajuda religiosa, que atesta o pecado ou a ausência dele a cada situação real (ou será que isso já não existe por aqui também?): as crianças que vão pra escola, a vizinhança onde circulam carros indiferentes, as vizinhas que reclamam, a justiça que investiga, a periferia que fica longe, o dinheiro que intermedia, os brutos que brigam, os casais que se separam.
Por último a empregada, que não é uma escroque, uma megera mal-intencionada, mas simplesmente alguém que, também, luta; e que teme – o marido, o pecado, o patrão – ao mesmo tempo que educa a própria filha, chateando-se supremamente ao ser acusada, também, ao que tudo indica, injustamente.
Há inúmeros temas nesse filme, todos eles bons, interessantes, atuais. Há o tema da justiça, um tema foucaultiano, que diz respeito ao papel da verdade na decisão daquilo que é justo e daquilo que não é. A mentira, como faculta a própria lei brasileira, pode ser usada na auto-defesa, com efeitos de produção de algo justo, mas isso não se estende às testemunhas… Há coisas a se pensar por aí, a partir de A separação. Por outro lado, o tema da separação em si, tema existencial, para o qual não há ciência, talvez só lamentos e a noção do inevitável. E há também, como não, o tema da degeneração física, da doença, o terrível Alzheimer. Mas, creio eu, acima de todos paira, como que catalizando-os, o tema da educação, da ética, já apontado.
No posto de gasolina, o pai pára tudo para ensinar a filha a lutar por ter de volta a gorjeta desmerecida dada a um frentista. Em casa, pára tudo também, pra ensinar-lhe que o que é certo, a tradução de uma palavra de uma língua pra outra, não é o que a professora ensinou e que vai cair na prova, mas o que é certo de verdade (as professoras se enganam). O pai com Alzheimer quase não dizia nada antes de parar de falar de vez, o que só tornava aquelas poucas palavras, responde o marido à mulher ansiosa, mais valiosas de serem ouvidas. A vida, além de luta, requer cuidados, muitos, assim como os filmes.
gostei muito do filme andrés. que bom que vc escreveu sobre. acho interessante pensar as várias separacões que ocorrem no filme. e acho interessante pensar que o pai é apenas um ponto de vista, e não o protagonista apenas. parece-me que todos os envolvidos são protagonistas ou melhor “agonistes”, uma espécie de “coro” esquiliano, que sofrem o pathos de um processo ou de vários processos mais fortes que eles. veja que mesmo o pai acaba cedendo quando aceita o acordo no final. mas depois volta atrás. também vejo o orgulho do casal destruindo-os, e a questao da indecidibilidade. gosto de pensar que esse filme se situa no centro, se é que há centro, de um “afective turn” do cinema contemporâneo, sobretudo porque politiza os afetos. ver o curso do denilson lopes neste semestre na eco-ufrj. no mais, acho que seria legal falar da imagem do castelo de cartas enquanto princípio de montagem: planos curtos, camera flutuante, que se concatenam com precisão milimétrica, até que, no final, um longo plano em camera fixa coloca em xeque a relacao do casal. enfim, passei uma noite de insonia depois de ver esse filme. realmente, vc tem razao, não há uma ciência sobre a separacão, a gente aprende é na carne mesmo. e como dói.
abraço
a.
Adalberto, saludos! Obrigado pela leitura e comentário e que bom que vc. gostou do filme! Nem sempre acontece de gostarmos das mesmas coisas, não é? Esse curso do Denilson deve ser algo de ótimo a acontecer, pena que é longe daqui. Também percebo algo desse “turn”. Ontem mesmo fomos ver “As mulheres do sexto andar”, com o Fabrice Luchini, que me parece poder ser o ator-símbolo dessa mexida. Quanto ao filme, acho que o pai demonstra, no momento em que “cede”, que o mais importante pra ele está naquilo que se passa na cabeça e no coração da filha. E, com isso, e ao exigir a presença dela e da empregada na assinatura do acordo, ele transfere o julgamento para um outro foro, menos técnico e engessado. Fico na dúvida a respeito de ele ter cedido – ou simplesmente ter feito a sua aposta mais alta, naquele momento… A dúvida, talvez seja isso o que mais exala desse filme; é o que você chama de pathos e aponta como a indecibilidade. Viver não tem remédio. Abraço.