ELA, COMO JOÃO BOSCO (O MÚSICO), JÁ NÃO PISA MAIS NO CHÃO
Há um romance de Salman Rushdie que tem como um de seus principais personagens um fotógrafo. Trata-se de O chão que ela pisa, em que “ela” é uma estrela de rock que, junto com o fotógrafo e um terceiro artista, também músico, compõe um triângulo amoroso que atravessa os anos ’60, a swinging London, mas cujas origens, como as de Rushdie – que também foi um londrino efervescido –, se encontram na Índia, mais especificamente na não-menos alucinada Bombaim. Li esse romance há anos atrás, assim que sua tradução foi lançada aqui no Brasil (1999) e retive dele algumas das reflexões que Rushdie fez a respeito da profissão de fotojornalista – uma ocupação que sempre me interessou e que pratico esporadicamente sem nunca ter publicado nada em jornal ou revista nenhuma –, certamente fruto de uma pesquisa que ele realizou previamente a escrevê-lo. Uma delas é a que diz que tirar uma foto é uma decisão ética tomada em frações de segundo.
Lembro-me disso ao contemplar o trabalho de Susana Dobal, artista fotográfica daqui de Brasília e professora do Departamento de Comunicação da UnB. Esse trabalho, com o qual tenho me deparado ao longo de vários anos, nas exposições que a sua autora tem realizado tanto coletiva como individualmente, hoje se encontra com maior facilidade na internet, no blog fotoescritas (http://fotoescritas.blogspot.com.br/), uma verdadeira sorte de todos nós (civilização ocidental) que, nesta última década, quase involuntariamente, tiramos brevê de internautas.
O que é que o trabalho de Susana tem a ver com essa frase de Rushdie? Eis uma pergunta legítima dado o fato de que, até onde sei, essa artista nunca foi uma fotojornalista. Nunca se a viu, creio eu, correndo atrás de uma foto, em desespero, ou então, a caminho ou à espreita de um “instante decisivo”. Tudo, na verdade, levaria a crer que o negócio de Susana nem mesmo seria a fotografia (sem jornal ou qualquer outra forma de mídia no meio), que talvez fosse uma espécie de escrita que se utiliza de imagens, um ser híbrido e inclassificável, que, contudo, sempre impactou, seja quando retratou a modelar calma de uma plácida superquadra brasiliense combinada com um dizer sobre as possíveis bombas que, naquele instante em que a foto foi tirada, estariam caindo sobre Bagdá, seja quando sua lente mergulhou num jardim francês para registrar como (e o que acontecia enquanto) a grama crescia (Il faut voir pousser l’herbe, já reclamava Marx).
Contudo, quero aqui defender que o trabalho dessa artista nunca se afastou do universo fotográfico e que, portanto, sim, podemos continuar com a reflexão de Rushdie ao tentar analisá-lo. Só que, para tal, devemos relativizar, ou talvez, redistribuir os elementos de que uma fotografia é feita. Talvez seja melhor usar, em vez de fotografia, o termo “gesto fotográfico”, que Susana traz à baila. Se uma fotografia é o resultado de uma decisão ética, por que é que o gesto fotográfico necessariamente tem que ocorrer em frações de segundo? Sim, estamos acostumados a que assim seja, cartier-bresson-orientados que somos. Mas e se esse gesto, essa decisão em que é certo que sempre há uma busca envolvida, fosse desacelerado? E se pudéssemos decompô-lo, captando instantâneos daquilo que se passa na cabeça do fotógrafo no momento em que ele está imerso nessa busca?
Ao ver o trabalho de Susana, já lhe disse isso e ela achou que tem a ver, eu percebo uma dimensão filosófica forte. Recentemente estava eu lendo o livro de Deleuze e Guattari O que é a filosofia, em que eles também se utilizam da velocidade para definir o exercício filosófico. Dizem eles que a filosofia envolve um sobrevôo a uma velocidade infinita sobre um campo de imanência do qual emergem conceitos. O fotógrafo, de acordo com essa reflexão rushdieana acima exposta, também opera em alta velocidade; e eis que se torna preciso que, para “fotografar” o gesto fotográfico, seja necessária uma espécie de filosofia. É o que me parece que Susana Dobal faz.
Andrés, sorte a minha que tenho quem espontaneamente reage ao que fico postando meio em dúvida se haverá mesmo algum eco. De fato, quero usar a fotografia como uma decisão ética – a de e ser fiel ao enigma que se apresenta – e como uma celebração por estar de olhos abertos. Penso também que a fotografia não tem nada a ver com uma fugaz fração de segundo, ela é uma decisão baseada no emaranhado de experiências anteriores que permite que o fotógrafo se surpreenda e queira captar o que está à sua frente. Ela é uma maneira de fazer o presente continuar martelando, mais pungente ainda do que naquele momento fugaz. Por isso também não tem nada a ver com morte, e sim com presente continuando no futuro. Suas fotos também comprovam isso – elas são cheias de vitalidade. Foi um alívio ver Brasília povoada de rostos na sua exposição. Enfim, algo mais do que espaço vazio e a política restrita aos políticos. E isso não passou, é uma cidade a mais que continua a existir com suas fotos. Você devia colocar as fotos no seu blog também. Por que as fotos só em sites para fotos e só palavras em blogs para palavras se as fotos também falam ?
Sim, Susana. Pra mim foi experiência incrível ter minhas fotos vestidas a caráter nas paredes da exposição, porque acho que elas podem emanar algo nos ambientes. Meu desejo é de que elas se espalhem por aí, nos lares e onde mais haja gente para receber sua vibração. É uma forma de interferir, criando algo de novo, um objeto com o qual as pessoas possam se relacionar. E o mundo virtual não deixa de ser um ambiente em que parte disso pode ocorrer. Vou considerar. Um abraço.