Deus da Carnificina, de Roman Polanski

QUANDO DAS TREVAS EMERGE UMA LUZ

Em suas colunas semanais na Folha de São Paulo, intituladas “Ponto de Fuga”, Jorge Coli, por mais de uma vez, falou do cinema de Roman Polanski, de forma, no meu entender, definitiva. Esse historiador e crítico de arte apontou pro fato de que Polanski é o cineasta que aborda, melhor e mais do que ninguém, o Mal. Resgato uma dessas críticas, “Uma lente nas trevas”, de 2004, onde ele assim se expressa, sobre A morte da donzela, filme de 1994 baseado na peça teatral do argentino-chileno Ariel Dorfman: (ele)

“começa como um ‘whodunit’ de coloração política e termina em inextricáveis laços entre vítima e carrasco: no final, invadidos pela música de Schubert, ambos se unem pelo olhar, indissolúveis. Eles haviam se juntado pelo mal que os atingira numa época conturbada e que permanecera dentro deles. A passagem do tempo mostra que cada um é não marcado pela maldade desde sempre e para sempre, mas é invadido por ela, como por um flagelo. Acarreta marcas, seduções, ambigüidades. Uma vez ocorrida, não há punição que possa remediar. Polanski não se conforma com maniqueísmos. Talvez, em seu cinema, o bem nem possua uma espessura; tudo se passa como se ele fosse apenas a ausência do mal. O mal é, existe; o bem se configura como seu vazio, em momentos de trégua. Se o mal privilegia alguns, se não é dado a todos, se desencadeia inevitável e sem solução.”

Agora, com Deus da carnificina – como, de resto, em Lua de fel, por exemplo, ou no mais recente Escritor fantasma –, não é nada de diferente o que se vê.

O filme, baseado também numa peça de teatro (que recebeu recente e exitosa adaptação aqui no Brasil), de autoria da dramaturga francesa Yasmina Reza, se passa quase inteiramente dentro de um apartamento em Nova York, onde dois casais de meia idade procuram um acerto para o fato de que o filho de um, numa briga de adolescentes – que ocorre num parque, no início do filme e num plano (cinematográfico) bem distante –, quebrou, com um pedaço de pau, a cara do filho do outro. A iniciativa para tal é do casal anfitrião e pais da “vitima”, com o personagem de Jodie Foster à frente, que acredita que a introjeção de um arrependimento (e a correspondente manifestação) por parte do filho do casal alheio, seria uma compensação suficiente (na contramão de toda a cultura de litigância civil existente naquele país).

Esses quatro personagens, nessa situação idílica, em que se propõe a tomada para si (ou para o outro?) de um assunto espinhoso, numa crença na capacidade humana de “dar cabo”, por meio de um entendimento comum (uma Aufklãrung?), daquilo que se lhe apresenta, progressivamente entram numa queda no que o ser humano tem de mais podre. Paulatinamente, diante do que cada um dos casais percebe do outro, os clamores internos da polidez e da cordialidade acabam virando meros espasmos num mar de hostilidade aberta e descontrolada. E essa hostilidade, que logo descamba também para uma pequena (sic) violência, termina revelando os conflitos próprios a cada casal, de modo que, logo, não são mais dois casais que brigam, mas sim quatro indivíduos, inteiramente largados a suas respectivas solidões, que vivem “o pior dia de suas vidas”. Coisa de arrepiar (de medo) – o que não consegue bater, de forma alguma, com as sinopses, lidas na imprensa, do filme e da peça, que dizem se tratar de uma comédia; sendo bem verdade, contudo, que havia gente morrendo de rir na sessão a que assisti, mas não seria o tal “rir de nervoso”?

Polanski permanece inteiramente coerente com a sua proposta, consciente ou inconsciente, de filmar o Mal. Mas, parece-me, há algo a mais a se ver nesse filme, talvez algo cujo mérito não esteja nele em si, mas na própria peça na qual se baseia. E isso tem a ver com o que nela está em jogo: na minha opinião, a própria sorte da política nos dias atuais.

A instauração do Estado moderno no âmbito da civilização ocidental foi um processo lento, que foi magistralmente narrado, por exemplo, pelo historiador Quentin Skinner. Diversos pensadores fizeram parte desse processo, mas, fundamentalmente, eu diria, dois deles, em especial, são axiais: Maquiavel e Hobbes. O primeiro causou escândalo de largas proporções ao declarar que a iustitia, a grande preocupação de toda a filosofia política pregressa com uma moral, não era uma boa fonte para os governantes. Nisso, fez par com Hobbes, que, quase um século e meio depois, fundou uma ciência, à qual deu nome de política, que gira em torno da noção de soberania e que diz, na linha do que Maquiavel havia postulado, que é preferível uma instância (o Leviatã, soberano a tudo e todos) que tome decisões, mesmo que elas firam a liberdade de cada cidadão, do que a ausência dessa instância, quando todos se sentem portadores da decisão “certa”. Esse mecanismo, ainda que duro, frio e injusto em muitos casos (mas o que é isso, “o” justo?), seria um que pouparia enormes derramamentos de sangue decorrentes das encarnadas lutas em volta do “correto”. E assim foi que se consolidou, na teoria, e depois na prática, o atual Estado de Direito, o Estado soberano, ou o Estado moderno, como quer que se queira chamá-lo, num processo de esfriamento de ânimos.

Pois bem, o argumento de Hobbes, quando questionado a respeito da liberdade que se perderia ao se adotar esse mecanismo, foi o de que haveria um ganho de segurança para que os cidadãos exerçam, de fato, uma liberdade. Essa última não passaria de um mero (sic) desejo quando não acompanhado de um aparato que a garanta minimamente. Acho que há fundamento nisso, mas percebo que séculos de funcionamento desse aparato tem levado a uma situação na qual emerge um dilema tão pungente como o que assombrou Hobbes, que viveu em pleno período de guerra civil.

O dilema de que falo é a indiferença contemporânea com relação ao próximo –  um próximo, diga-se de passagem, que, graças à globalização, se ampliou maçiçamente nas últimas décadas. Essa indiferença está presente em Deus da carnificina, fundamentalmente na figura do personagem, no filme, do genial ator Christopher Waltz, um refinado advogado que passa a maior parte do tempo pendurado ao seu celular, comandando estratégias de grande envergadura enquanto discute com o casal anfitrião a questão da agressão cometida pelo seu filho. Esse personagem, redondamente cínico mas também arguto feito uma raposa, num determinado momento se exime de qualquer responsabilidade pelas ações do seu rebento, ao dizer que se trata de um (ironicamente, dado o seu próprio comportamento) “maníaco”. Bate de frente com a anfitriã, uma defensora dos direitos humanos (e animais), amante da arte, que quer achar o entendimento esclarecido e quer a responsabilização; quer, digamos, encontrar uma atitude que seja ética.

Esse advogado, como inúmeros que vemos na vida real a defenderem o eticamente indefensável (e ganharem os tubos), é o produto de quê? Desse mesmo aparato que, a partir do século dezessete, esfriou a política. Eles são, eu diria, os domadores de Leviatãs, indiferentes sobremaneira a tudo o que não diga respeito à salvação da própria (dos seus clientes inclusive) pele – em face a esse temível monstro, o único que pode roubar a, de resto, ilimitada “liberdade individual”, essa que permite que sejamos “maníacos” sem que isso tenha maiores conseqüências.

Contudo, acontece, paradoxalmente, que o mundo atual está presenciando, no que diz respeito à salvação da própria pele, uma ameaça que é real e que decorre, largamente, dessa mesma atitude, indiferente, de salvar a própria pele, de salvaguarda das liberdades individuais, de combate a esse monstro que, no fundo, é o pai desses pequenos (e ricos) domadores. Essa ameaça é a ameaça ao meio ambiente, que está fazendo reacender uma chama há tanto mitigada, a chama da indignação, da responsabilização pela vida e pelo próprio desejo. Há, hoje – e Deus da carnificina tem o grande mérito de abordar isso –, uma nova possibilidade no ar: a possibilidade de inventarmos uma nova política que seja calcada na ética (e isso não corresponde a uma anã “ética na política”). Na verdade, isso não é uma possibilidade, mas uma necessidade.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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1 Response to Deus da Carnificina, de Roman Polanski

  1. Guilherme Awesome Dude disse:

    eu gostei do filme, Polanski consegui fazer mais um filme bom

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