UM CÍRCULO QUE É UM CUBO
“(Em uma análise,) felicidade é
suportar o inesperado”
Jorge Forbes, in Inconsciente e
Responsabilidade – psicanálise do
Século XXI
Existem filmes e mais filmes que se organizam como novelo de pontas soltas que, no final, acaba mostrando a sua coerência, a sua integridade. Eu já escrevi aqui a respeito de um mestre nesse filão, o mexicano Iñárritu, ocasião em que citei o primeiro dos filmes desse tipo a que assisti: o de Robert Altman, Shortcuts: caminhos da vida. Mas, nessa oportunidade, esqueci de mencionar um outro perito no assunto, que ultimamente tem nos encharcado, com doses generosas e sempre diferenciadas geograficamente, desse tipo de construção à la Cubo de Rubik (aquela engenhoca que nos desafia a arrumar as suas seis faces em cores iguais a si e, ao mesmo tempo, diversas uma das outras) : Woody Allen. Barcelona, Paris, Roma, Veneza e por aí em diante têm sido recentemente, na filmografia desse cineasta nova-iorquino, o ponto de apoio para um deslocamento, que parece não ter fim, de personagens que procuram, como os minicubos de que o Cubo referido é feito, a sua respectiva “turma”. Mas não é sobre Woody Allen que eu quero falar, e sim sobre um filme a que assisti o outro dia e que me remeteu fortemente a ele. Trata-se de 360, de Fernando Meirelles.
O recursos de Meirelles, nesse filme, são muito parecidos com os do padrão Allen, ao qual já estamos acostumados: muitos personagens, música que tende para o humorístico/circense – ou, no mínimo para o alívio de eventuais tensões –, recortes que criam quadros simultâneos na tela e, claro, encaixes geniais. Contudo, 360 me agradou mais do que tudo o que tenho visto de Woody Allen nos últimos tempos. Eu não poderia dizer que se trata de uma repetição da fórmula alleniana que, na minha visão, já deu o que tinha que dar. (Faço um parênteses aqui para manifestar a minha impressão de que a ótima acolhida de Meia-noite em Paris junto ao grande público se deveu ao fato de lá serem apresentados personagens de uma solidez que não existe mais nos dias atuais, quando prevalece a horizontalidade nas relações (e a decorrente ansiedade) – tema, aliás, preponderante nos filmes desse prolífico cineasta.)
Onde está o segredo do filme de Meirelles? Creio que na presença de um elemento que simplesmente não existe nos filmes de Allen: a violência. Sim, porque pode até ser que em um ponto ou outro da filmografia desse histrião tenhamos a presença de um revolver (como no último Para Roma com amor, quando um assaltante invade o quarto da noiva adúltera), mas nunca vamos, nesse universo, ver um desfecho que passe sequer perto do fatal. É inconcebível. Qualquer perspectiva trágica está aí sempre como mero coadjuvante do cômico.
Pois bem, em 360, temos diversas situações em que uma violência se insinua. Temos até mesmo a sua presença explícita numa “negociação” sexual que termina com dois corpos estirados no chão de um quarto de hotel. Eu diria, contudo, que, se ela está sempre à espreita, nesse filme, ao contrário de outros desse cineasta brasileiro, há um esforço em mantê-la assim, latente, no terreno das possibilidades reais – a sequência do quarto de hotel de aeroporto leva isso ao paroxismo. Vejo, por meio do Google, que esse filme é uma adaptação de uma peça (La ronde) do austríaco Arthur Schnitzler, contemporâneo e amigo de Freud, cujo outro escrito deu origem ao Olhos bem fechados, de Kubrick, e penso que tem tudo a ver: a atmosfera desses dois filmes é parecida, carregada daquilo que aproxima o sexo da violência, uma linha tênue (e circular, no caso), em que é possível achar um espinhoso (e, por vezes, prazeroso) equilíbrio.
Mas estabelecido o itinerário por cima dessa corda bamba schnitzleriana, creio que 360 ainda apresenta um elemento a mais, que atualiza a peça escrita na virada do século XIX para o XX. Mostra-se uma aldeia, tal como a famosa Viena fin-de siècle, só que, agora, globalizada. Voltamos um pouco a Allen e suas angústias. E eis que disso, dessa confluência de perguntas (reais, dado que não se descarta mais o elemento violência) e respostas em torno dos milhares de encontros possíveis nos dias atuais, das inúmeras chances que o acaso hoje dispõe diante de nós, temos uma reflexão sobre algo que vários podem julgar ingênuo, ou mesmo bobo, demodê ou apelativo: a felicidade.
Em diversos momentos esse filme nos aponta para isso: o fato de que estamos muitas vezes muito mais perto dessa condição do que poderíamos achar. Nos dias atuais, horizontais e não mais verticais, isso é tão mais verdade; contudo, temos que estar preparados para quando a surpresa, o novo, se der em nossas vidas, para saber abraçá-los com unhas e dentes, como acontece, na tela, com os dois ou três personagens mais inesperados. Um novo treino se faz necessário, em que o elemento coragem se sobreponha a todos os demais.
Esse nível reflexivo, essa condição mais filosófica a que se chega em 360, é algo que não se consegue atingir jamais nos filmes de Allen, que simplesmente patinam em torno a algo que é o riso e a sua consequência, a alegria. E que não deve ser confundida com a mais perene e crucial felicidade.
Muito boa a sua análise e as muitas referências que você faz. Mostrou aspectos dos filmes do Woody Allen para os quais não atentamos, ou melhor, eu não tinha atentado. Vou conferir. Um abraço
Cléa
Obrigado, Cleita. Quem sabe até o nosso próximo encontro do Na Rede você já tenha visto esse filme e, então, tenhamos algum tempo pra trocar impressões. Um abraço!