UMA COLHER DE CHÁ PARA LAVAR A ALMA[*]
Este ano, na sua 45ª edição, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tomou uma sábia decisão: separou os documentários dos filmes de ficção, passando cada uma dessas modalidades a ter o seu horário e premiação próprios. Ao contrário do ano passado, eu, neste ano, acompanhei boa parte daquilo que foi exibido e posso dizer que gostei muito do que vi e ouvi, inclusive na Mostra Brasília, dedicada à premiação da produção local. Acho que uma tônica muito interessante atravessou, como um espeto, o conjunto do que ocupou o Teatro Nacional, centro improvisado desta versão do Festival: a subjetividade, ou o estar no mundo enquanto sujeito, suas dores, suas recompensas.
“Interessante”, essa palavra pasteurizante, por que? Ora, porque justo quando se optou por separar a “verdade” da ficção, a “realidade” do sonho, a “objetividade” da “subjetividade”, eis que diversos dos filmes documentais exibidos, os melhores aliás, se encarregaram de fazer um furo nessa barreira, evidenciando a presença do autoral, deixando à mostra, na imagem, os pés de quem estava por trás da câmera (como anos atrás fez a fotógrafa Usha Velasco numa exposição sua). Por outro lado, viu-se, dentre os filmes ficcionais, abordagens reiteradas de um traço humano que pouco se costuma associar ao “espírito” brasileiro, a tal da “brasilidade” – objeto, em última análise, de boa parte daquilo que se quer construir quando aqui se opta por “inventar” uma história –, pelo menos nas últimas décadas: a melancolia, quando não a depressão, o sofrimento do estar vivo.
E fora isso, por sorte, mais uma vez, um filme excepcional, de encher os olhos, uma pérola que nos faz renovar a fé, o nosso culto a essa arte que é o cinema; e que confirma o Brasil como personalidade de peso (VIP) na história, universal, dessa arte.
Comecemos pela ficção. Sem ter visto o primeiro dos longas dessa modalidade, o pernambucano Eles voltam, dentre tudo o que vi e excetuando a obra prima que irei deixar para o próximo post, dois filmes me chamaram a atenção por abordarem praticamente o mesmo assunto, o mesmo universo: Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes (PE) e o curta brasiliense Colher de chá, de J. Procópio e do Coletivo Casa30.
Ambos os filmes focam dois jovens médicos residentes em hospitais públicos em centros urbanos dos dias atuais. Uma, Verônica, é psiquiatra, o outro, clínico geral, e os dois portam uma dor parecida, não necessariamente relacionada ao ambiente de trabalho em comum. Um desconforto, uma certa condição individual de alheamento, eis o que ambos os filmes tentam construir, com bastante competência, ótimos atores, como que querendo atingir retratos mais complexos, estados de espírito para além dos estereótipos que povoam muito do que já se filmou e foi exibido em festivais anteriores. E indicando, também, que o universo urbano e de classe média, esse resultado real de lutas e esforços coletivos de que o cinema também fez e faz parte, não é um mar-de-rosas, um território isento de angústias e desafios, isento de drama.
No que diz respeito aos documentários, chamo a atenção para quatro deles, todos longas, sendo dois concorrentes ao prêmio principal, um ao Troféu Câmara Legislativa e o último tendo sido exibido hors-concours. Os dois principais são, coincidentemente, filmes cujo título é o nome de alguém, são filmes que falam de pessoas próximas dos seus autores: Otto, de Cao Guimarâes, e Elena, de Petra Costa. O primeiro começa logo com uma citação do filósofo romeno-francês Emil Cioran, que diz algo como que o retrato do subjetivo é um caminho para o retrato do universal. Isso, creio, dá o tom também de Elena. Já os outros dois filmes, Parece que existo e Entorno da beleza, ambos brasilienses, acompanham essa lógica um pouco menos explicitamente, ainda guardando alguns laivos de “objetividade”, algumas ressonâncias de uma documentação da “realidade”.
Otto narra, imageticamente, a história que deu origem a um ser, o pequeno Otto, filho do diretor com a sua mulher, uma jovem uruguaia que ele conheceu quando, ela sendo a única espectadora, exibiu um filme seu em Montevidéu. Esse primeiro encontro não foi filmado, mas quase tudo o que dele resultou, uma história de amor com a sua consequente “prova” em carne e osso, toda a gestação de Otto, sim. Uma reflexão inspiradíssima a respeito daquilo que são (somos) os seres, de onde eles vem (vimos) e da beleza que carregam (carregamos) consigo (conosco). Nenhum discurso, nenhum “depoimento”, simplesmente um filosofar com imagens a respeito de uma história vivida, da emoção provocada por um encontro com um outro especial, da magia que aí reside.
E eis que Elena, filme deveras comovente, também vai por essa senda, só que esse alguém especial, esse objeto de um amor único, no caso, é alguém que já morreu, a irmã da diretora. Também não há depoimentos aqui (como poderia, se Elena já não está mais viva?), mas tão somente uma declaração por parte de uma irmã caçula que, aos sete anos de idade, viu a sua irmã, uma atriz que acabara de ingressar numa faculdade no exterior, tirar a própria vida, em função de um sofrimento existencial. Como entender isso, como aceitar? Eis um desafio posto, gigantesco, que Petra, a diretora, encarou empunhando uma câmera e um microfone. E, é importante que se diga, que venceu – creio que, em grande parte, graças a essa atitude. O filme, eu diria, foi o que proporcionou, finalmente, o encontro entre irmãs, que não pôde, no passado, acontecer na sua plenitude, deixando somente interrogações no lugar onde deveria estar o mágico. Ele restabeleceu a possibilidade do novo, onde havia um somente um nó torturante.
Quanto a Parece que existo, devo declarar, em primeiro lugar, que sou suspeito ao dizer qualquer coisa a respeito, pois Mário Salimon, seu diretor, é meu compadre (sou padrinho, com muito orgulho, do Luís, seu primogênito). Mas, deixando isso de lado, creio que esse filme consiste numa proeza, que é a de trazer à tona um ser sobre o qual passou a pairar, paradoxalmente, um silêncio: o músico brasiliense João MacDowell, hoje residente em Nova York. Cal, como é mais conhecido esse artista, foi contemporâneo de Mário na cena musical da capital, nos anos ’80. Nessa cena da qual emergiu o famoso “rock rasília”, mas que foi feita, também, de inúmeras iniciativas experimentais que não necessariamente foram no sentido do comercialmente viável (por um tempo) rock-and-roll.
Uma dessas iniciativas foi a de Cal, líder do sensacional conjunto Ton-ton Macoute. Pois bem, acontece que esse músico, depois da débâcle dessa “cena”, acabou se estabelecendo como compositor erudito nessa hoje capital mundial que é a cidade de Nova York; e quem é que soube disso (por aqui ou por lá)? Ninguém. Isso, esse silêncio, creio que foi o que motivou, tal qual a morte prematura que deu ensejo a Elena, essa busca, essa reconstrução por parte de Mário Salimon, que restabelece – enquanto sujeitos, seres vivos dos quais podemos ainda esperar muito – a toda uma geração de músicos e artistas, que se viu morta pela incompetência (manifestada claramente na voz de Paulo Cesar Cascão, um dos depoentes de Parece…) das gravadoras de então, as quais “fecharam” com somente um dos produtos então em evidência, o rock.
Por último, Entorno da beleza, de Dácia Ibiapina, é um filme que, a princípio, não mostra nada de subjetivo, tendo como proposta retratar o universo dos concursos de beleza do entorno da capital, concursos esses que desembocam na eleição, a cada ano, da Miss Distrito Federal – que, por sua vez, irá concorrer ao prêmio de Miss Brasil. O concurso retratado é o do ano de 2010 e o que se vê na tela é, além de belas mulheres, o brilho nos olhos, o arfar de expectativa, o pulsar não só das protagonistas dos certames, mas das pessoas às suas voltas. Por vezes, essas reações orgânicas, essas alterações vitais, acabam também sendo as nossas, espectadores, que acabamos embarcando na proposta – lembro de ter sofrido ao ver as misses todas de uma das etapas entrarem numa única van, e ao ter entrevisto, naquele instante, um possível acidente que, afortunadamente, não ocorreu.
Qual é o segredo desse filme? Que território ele adentra que nos faz vulneráveis à sua fisgada? Creio que é a questão do excesso, ou do luxo, como alguns (Jorge Forbes) preferem chamar. Há nessa questão a presença de uma lógica diversa daquela a que estamos tão acostumados. Tudo hoje parece ter que ter uma explicação, um por que, ter que se encaixar num fluxo linguístico em que a palavra, no seu aspecto de significado, predomina. O luxo, o que excede por natureza, é o contraponto disso, algo muito feminino. Um concurso de misses, simplesmente, não tem um por que, não se explica, é tão somente algo para ser vivido, visto, ouvido. E Dácia Ibiapina – uma mulher, gênero único a ter sido capaz de fazer um filme como esse – foi extremamente feliz ao fazer o mínimo (mesmo) de perguntas, ao deixar a câmera ser levada pelo fluxo arlequinal (para usar uma palavra de Mário de Andrade da qual Forbes, na sua psicanálise do século XXI, se apropria) do inexplicável.
[*] Este texto foi escrito antes da premiação dessa edição do Festival, ocorrendo que somente a sua postagem se dá num momento em que esse resultado já se conhece.