Holy Motors, de Leos Carax

QUANDO O QUE MOVE É TOTALMENTE INESPERADO

Calhou-me de ter assistido ao recém-lançado filme de Leos Carax, Holy motors, junto com um grupo de amigos. Foi minha salvação, de vez que, ao sairmos, todos meio trôpegos e em busca de explicações, pudemos juntar os nossos cacos e tentar construir um caminho em comum que nos tirasse do sem-sentido. Não chegamos a uma saída propriamente, mas eu, com essa minha mania de decifrar o que, às vezes, não quer ser decifrado, fui desviado, pelas discussões ocorridas, de fechar uma leitura errônea, uma leitura em que o começo do filme (não o seu prelúdio onírico, mas a sua primeira sequência viva, digamos) serviria como base.

Vamos, primeiro, deixar claro que Holy motors não é um filme, em absoluto, fácil, um filme do qual se possa dizer com tranquilidade que ele fala sobre isso ou aquilo, que esse ou aquele é o seu objetivo, seu alvo evidente. Se digo que saí dele com uma leitura “errônea”, isso se deve a que, queira-se ou não, ele tem uma lógica, ele é um conjunto de “enunciados” que tem uma amarração. Há filmes que não tem isso – e por isso são descartáveis, não merecem o nosso tempo gasto em assisti-los –, mas esse não é o caso deste filme de Carax. Pelo contrário, creio que ele é um filme tão poderoso que atinge regiões nossas muito delicadas.

A questão nesse filme é que ele não nos oferece muito facilmente um chão. Acompanhamos, ao longo dele, um dia da vida de um tal monsieur Oscar, o personagem do impagável ator Denis Lavant, velho parceiro de Carax, um sujeito que percorre as ruas de Paris numa limusine que é, na verdade, um camarim onde se traveste em nove diferentes personagens, cada um mais inesperado que o outro. Quando a limusine para de rodar e a elegante chauffeuse  Céline (uma senhora de meia idade que lembra a atual chefe do FMI) desce para abrir a porta do “patrão”, lá vai mais um personagem para seu novo encontro, para a sua próxima performance, cujo script ele recém leu. Cada encontro tem um tempo preciso e um cenário já à espera. Tudo transcorre como manda o figurino – tudo bem que um óbvio cansaço se deixa entrever no olhar desse insólito “executivo”, à medida em que o dia avança.

No final, não se consegue saber quem, de fato, é esse Oscar, qual é o propósito desse seu cotidiano. Começa-se, então, a desconfiar do próprio filme e sai-se dele à procura de alguma justificação para o que se acabou de ver. Por vezes, enquanto se assiste ao filme, tem-se a sensação de não se acreditar no que se vê, quase como se estivesse a ver um filme B, trash. Enfim, tudo é o oposto do que se entende hoje como sendo uma experiência cinematográfica, essa em que se entra numa sala escura e se senta para ver uma outra realidade, seja ela documental, seja ficcional. Holy motors nos oferece, a princípio, um mero conjunto de performances, cujo elo de ligação passa pelo artista que as executa e pelo seu camarim ambulante de alto luxo. Nada mais nos é dado para que possamos relacionar a algo, para que ativemos uma esperança sequer de mímesis.

Mas, alto lá. Há sim um momento, rápido, em que Oscar aparece como ele é. Um momento só? Não, dois. Não, três. E eis que se pode, a partir desses três momentos, depreender que o que Carax visa, neste seu último filme, não é algo muito distante daquilo que ele já havia abordado no seu Os amantes da Pont Neuf: a arte e o seu porvir. Nesse filme da década de oitenta, tivemos o encontro de um clochard, vivido pelo mesmo Lavant, com uma jovem pintora (Juliette Binoche) que está perdendo, progressivamente, a visão. Aqui, no primeiro dos três diálogos reveladores, temos, também uma indagação sobre a visão: o que é que te move, artista? A beleza do gesto, responde Oscar. Dizem que ela reside no olhar de quem vê, diz o interlocutor; mas e se a capacidade de ver a beleza não mais existir, insiste esse?

Eis um perigo real. Atenção: real. E eis que se tem, nesse entroncamento, nessa interseção do itinerário do nosso performer quase autômato com o de um outro colega (com o de outros colegas, na verdade, já que os três momentos citados são momentos em que isso acontece), um drama. Não é necessário que saibamos onde Oscar reside, qual é o seu verdadeiro endereço. Ele pode, de fato, não tê-lo, assim como o clochard da Pont Neuf. O que precisamos saber, e isto nos é dado, ainda que muito rapidamente em meio a todos os inacreditáveis acontecimentos do dia, é o que move a esse duende vivido por Lavant, o seu motor sagrado.

Bem como o motor de quem o financia, o que também nos é mostrado, e que nos remete aos filmes de David Lynch, onde taras as mais diversas resultam em cenas idem. Porque, sim, toda arte, por mais que se “resuma” a um “mero” gestual – e tal qual uma improvável limusine – necessita de quem a sustente.

Na primeira vez que vi esse filme (essa em que estava com um grupo) – pois, sim, fui uma segunda vez para checar as suas “linhas de fuga” – estava no contexto da excursão que fiz à Bienal de São Paulo (ver último post). Havia acabado de ver, dentre outros, o trabalho do holandês Bas Jan Ader, performer que, aos 33 anos, desapareceu no Oceano Atlântico, quando resolveu tentar atravessá-lo numa precária embarcação. Muito provavelmente, esse contexto tenha me ajudado a fazer a leitura que fiz e que agora compartilho.

Isso pode levar a pensar que Holy motors talvez seja um filme que só funcione para quem está, de algum modo, ligado em arte. Acho, contudo, que não. Primeiro, porque há de se perguntar até que ponto o mundo atual não é um mundo em que tudo se mede por uma palavra que o mundo da arte já adotou para si há tempos: performance. Segundo, porque ocorre-me que o tema das máscaras infinitamente sobrepostas umas às outras (aquilo que vemos acontecer nesse filme) é um tema sobre o qual um conjunto de filósofos muito peculiares   construíram, no Ancien Régime (século XVII), uma filosofia – um “discurso” ao menos – surpreendente, denominada moraliste.

Foi Renato Janine Ribeiro quem primeiro chamou a atenção para essa filosofia, precisamente no ensaio “O discurso ‘moraliste’”, que faz parte do seu livro A última razão dos reis. Nele, esse pensador mostra como Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère instituem um conhecimento que se afasta do diálogo suposto em torno de uma (ou da) verdade – nisso, eles se aproximam, na visão de Ribeiro, de Freud (com seu divã, que evita que todo diálogo ocorra) e de Foucault (com o seu método epistêmico). São eles filósofos que viveram num mundo cortesão, em que o público se resume a aparecer em público. Um mundo em que nada se delibera, porque a decisão está nas mãos de um só, restando a todos dançar conforme a música.

Esse mundo em que o sentido do coletivo está tão esvaziado é, por acaso, um mundo isento de conhecimento? Não, vêm a dizer esses filósofos: é possível ler, nessa dança infinita, nessa sucessão de máscaras, algo, que não reside na palavra, mas na ação, no gesto.

Holy motors talvez seja um filme moraliste, justo pelo fato de (quase) nos negar um diálogo, uma entrada e, muito menos, uma saída. Sua cena inicial, em que o cineasta (o próprio Carax) acorda e atravessa uma parede que contém uma passagem secreta para adentrar uma sala de cinema cheia de espectadores é uma indicação de como se deve ler o que está por vir: não pelas vias usuais do entendimento.

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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