ENCERRAMENTO
Tinham me dito que o terceiro andar da Bienal era um que sobrava, com um excesso de fotografias. Não achei. Começando pela série do fotógrafo alemão August Sander, sobre pessoas do século XX, esse andar fechou em alto estilo a minha visita à 30ª Bienal.
Creio que as fotos de Sander, todas retratos em preto e branco, eram mais de quatrocentas. Pois bem, eu diria que 1) não restou uma sequer que eu tenha deixado de ver e 2) se mais delas houvesse, eu as teria visto com igual prazer. Cada retrato me disse tanto… Confesso que me identifiquei com a proposta, de cunho enciclopédico (informa-me o catálogo), de retratar um século, através das pessoas. A fotografia que pratico, já escrevi isso uma vez, no corpo de um projeto, busca algo daquilo que significa o estar vivo hoje, neste presente atual. E eu creio que Sander tinha um espírito parecido: seus retratos dizem tudo, cobrem o grosso da experiência humana (de uma região particular do mundo, é bom que se diga), sem ter que apelar para guerras (e que guerras, já que se trata da sua terra natal), descobertas, processos, construções, derrocadas, fugas ou, sequer, encontros (a não ser o do fotografo com o retratado). Tudo isso já está lá, no olhar, na postura, nas roupas dos retratados, no contexto de cada foto.
Em seguida, deparei-me com o trabalho do americano Mark Morrisroe, também definidor. De que? Bom, creio que de uma ressignificação do ato de fotografar. Estamos, com ele, no final da década de sessenta e as polaroides prenunciam uma liberdade na fotografia (de composição, de tema, de ocasião) que veio pra ficar, sendo, como se diz no âmbito jurídico, “recepcionada” plenamente pelo universo digital.
Saí dessas duas exposições muito inspirado, ao ponto de terem me chamado a atenção até mesmo o bico do hidrante e as escadas do prédio. Mas ainda iria me deparar com propostas impactantes, algumas do universo fotográfico, outras não.
O trabalho (fotográfico/cênico) do islandês Sigurdur Gudmunsson, revestido de fino humor, me impactou, assim como o do brasileiro Nino Cais. Gostei também do de Marcelo Coutinho, criador de palavras – reais, com significados elaborados e geniais –, algo que, nas minhas aulas de antropologia estrutural, lembro-me, sempre foi posto como impossível. Esses três artistas, cada um com seu jeito cômico de se expor meio que formavam um antídoto ao trágico que lhes estava próximo, a esse artista holandês, Bas Jan Ader, que insistia em se colocar, com relação ao mundo, num ângulo oblíquo – como não se impressionar com o filme de sua queda, de bicicleta, num dos canais de Amsterdam, ou sua tristeza profunda registrada num vídeo, intitulado I’m too sad to tell you, em que seu semblante mudo transmite tudo o que é preciso. (Sim, esse também é o artista que se lançou, com 33 anos de idade, ao Oceano Atlântico num minúsculo veleiro, para nunca mais voltar a ser visto.)
A África, por último, estava muito bem representada, ao meu ver, pela pintura do marfinense Fréderic Brouly-Bouabré, uma proposta que guarda alguma semelhança com a de Sander, só que por meio do desenho e a respeito de um outro quinhão do planeta.
Saindo do prédio da Bienal, a uns duzentos passos, estava a exposição da brasileira Adriana Varejão, também impressionante. Suas paredes e telas revestidas de vísceras, seus craquelamentos cerâmicos e seus azulejos perspectivos (ou perspectivas azulejadas) retiram a arte, assim me parece, do ambiente de conforto para dizer ao espectador que todo cuidado é pouco, que não devemos nunca nos esquecer que tudo passa por um corpo, matéria vulnerável, húmida, sujeita a constantes pressões, como aquilo que se move no fundo do mar.