ÀS VEZES, É PRECISO TERGIVERSAR A FIM DE CONDENSAR
Tem tempo, já, que vi o último filme de Ang Lee, As aventuras de Pi. Foi dos primeiros desta safra do Oscar a que assisti (à exceção de Argo, que estreou mais cedo). Fiquei muito impressionado e quis escrever algo a seu respeito. Mas confesso que não consegui elementos suficientes para tal, mesmo depois de ter locado e revisto O incrível Hulk, desse mesmo diretor: deixei o comentário sobre esse filme para um outro momento, quando me ocorresse algo que pudesse vincular produções tão díspares quanto Desejo e perigo (que eu adorei), o irregular Hulk e O segredo de Brokeback Mountain (que eu ainda preciso ver por inteiro, pois vi somente trechos na televisão). Está aí um cineasta difícil de “pescar”, disse a mim mesmo durante um bom tempo – ou, então, vai que meu talento de pescador já não se encontra tão presente.
Antes, porém, de adentrar o fato decisivo que me levou a ressuscitá-lo neste espaço, quero dizer sobre o quanto esse filme me impressionou. (Ele é um filme feito pra isso. Trata-se de uma narrativa única, que cumpre a promessa feita ao seu ouvinte – e, por tabela, a nós, espetadores –, um ateu, de mostrar o significado do divino.) Creio que as cenas da tormenta, quando Pi, já órfão e bastante esgotado na sua peleja por sobreviver, se amarra ao barco e grita a plenos pulmões ao céu encrespado e eletrificado para terminar com a brincadeira, são cenas para ficar na história do cinema. Tão fortes quanto as de Moby Dick, com o Ahab de Gregory Peck a teimar em se sobrepor – e a morrer, em decorrência disso – ao que é infinitamente maior e mais poderoso (aliás, a – ou uma – baleia gigante não deixa de dar o ar de sua graça, num outro momento mágico de As aventuras…).
Bom, mas o que me motivou a voltar ao filme de Lee foi ter visto, mais recentemente, um outro filme a respeito do qual ainda vou escrever, num próximo post: Amor, de Michael Haneke. Penso que ambos esses filmes abordam o mesmo e terrível assunto, a morte, mas sob ângulos opostos e, talvez, complementares. Como assim, a morte? Isso é bem evidente em Amor, muitos irão dizer; mas e n’As aventuras, como ela se encaixa? Ora, quem não entender que esse filme é feito de camadas narrativas e que a camada visual (aquela que nos impacta mais) é um mero desvio, uma tergiversação em relação à camada real, creio que não terá entendido nada a seu respeito. E, bem, nessa camada submersa, à qual temos acesso por meio de uma breve abertura na camada mais imediata, o que impera é a morte, ou melhor, aquilo que nós, humanos, dela apreendemos, o desespero que ela nos traz e o desamparo que ela representa.
Eu ando lendo sobre arte, em especial sobre pintura. E uma das coisas que li recentemente foi um texto do pintor brasileiro Paulo Pasta a respeito da obra de Henri Matisse, esse pintor monstruoso que viveu no início do século passado, marcando-o indelevelmente. Pois bem, creio que o que Pasta diz a respeito desse pintor tem algo a ver com Lee e seus filmes. Ele chama a atenção, nesse texto que se intitula “Volúpia e ordenação”[i], para o fato de a pintura de Matisse 1) ser expressionista num sentido oposto ao que se costuma entender (com o expressionismo alemão, que retrata, resumidamente, o sofrimento do existir), pois trata de “dar forma à alegria” e 2) ser o resultado de um processo extremamente dolorosos, trabalhoso e, por vezes, perigoso, já que cada quadro seu era visto por ele como derivado de uma condensação de todas as sensações por ele vividas.
Volúpia e ordenação, desejo e razão eram invocadas e postas em marcha a cada nova criação pictórica desse artista, num processo que muitos testemunharam ser física e mentalmente exaustivo. Picasso implicava e, por último, se irritava com essa condensação “alegre”, de resultado harmônico, balsâmico, praticada por Matisse – chegou a dizer que as suas aspirações eram as de “uma velha senhora” –, mas ele não entendia, diz Pasta, que “seu erotismo, sua volúpia eram organizados” e que, nas palavras de Henry Miller, “em todo poema de Matisse há a história de uma partícula de carne humana que rejeitou a consumação da morte (…)”.
As aventuras de Pi é uma fábula e Pasta termina o seu texto sobre Matisse fazendo uma análise de um quadro seu, Banhistas com tartaruga, em que três mulheres nuas olham para uma pequena tartaruga, esse ser fabular por excelência. As três mulheres, ainda que o cenário seja o de uma praia ou algo parecido (há um azul do mar e um azul do céu na parte superior) e apesar da “sugestão de alegria vinda da comunhão dos (seus) corpos nus com a natureza”, têm um ar triste, grave. Há estranheza, que o intérprete atribui à intenção de mostrar que a “época da fábula da pintura já passou, ou está passando” e que o coelho, o parceiro fabular da tartaruga, com a sua rapidez, logo irá suplantar a “disciplina da tartaruga”.
Não sei, talvez seja, da parte de Pasta, uma mera (e bela) forma de terminar um texto que inicia com a constatação, de parte de Matisse, de não entender a pintura que irá lhe suceder. Talvez a questão da disciplina (e da lentidão que a pressupõe) seja um elemento comum, a unir a pintura de Matisse à de Pasta – e, quem sabe, essa seja uma questão a ser investigada nos filmes de Lee. Mas creio, com algum grau maior de certeza, que toda e qualquer tentativa de entender um pouco daquilo que Ang Lee procura com seus filmes, tão diversos, terá que passar por uma análise daquilo que há neles relativo a essa “partícula de carne humana que rejeitou a consumação da morte”. (E a essa partícula eu daria um nome: fantasia.)
[i] In PASTA, Paulo; A educação pela pintura; São Paulo, Martins Fontes, 2012.
Andrés, você nos conduz por muitos caminhos ao falar de um filme e sempre de forma surpreendente. Vi As aventuras de Pi, mas nem cheguei perto das muitas considerações que você faz. Gosto dos filmes de Ang Lee. Razão e sensibilidade e o Segredo de Brokeback Mountain me encantaram, pricipalmente o último, uma das histórias de amor mais pungentes que já vi nos últimos tempos. Mas o que quero lhe dizer é que senti a urgente necessidade de conhecer um pouco de Matisse, em função de sua crônica. Continue assim, instigante. E escrevendo tão bem. Abraços
Cléa
Caro Andre, tudo bem? Cheguei ao seu texto sobre o filme “Aventuras de Pi” por meio de um post do Mário sobre fotografia no Facebook. Li o texto e não resiste em lhe enviar estes comentários, pois o filme causou também em mim forte impressão. Ao contrário de você, contudo, não gostei do filme. Achei-o de uma violência extrema. É certo que o filme tem cenas belíssimas, mas todas elas criadas artificialmente com modernos recursos de computação gráfica. Como a música, essas imagens servem para ampliar algum sentimento ou sensação do personagem.
Concordo com você que o filme é uma fábula e quem não percebeu isto não entendeu o filme. Fico até feliz que assim seja, pois minhas filhas assistiram ao filme e não o entenderam. Ainda bem. Sim, trata-se de uma fábula, mas não sobre a morte. É uma fábula sobre a violência de que é capaz o ser humano. De fato, o filme é extremamente violento, como os demais filmes do autor, entre eles o Brokeback Moutain.
É violento pois conta a história da luta pela sobrevivência em que o personagem principal – Pi – se envolveu. Ele assistiu e praticou atos de extrema violência, como o assassinato e a antropofagia (lembra do avião que caiu nos Andes com um time de rugby uruguaio?).
A única forma que Pi encontrou para lidar ou enfrentar essa violência foi a sublimação, que consiste num mecanismo de defesa do subconsciente para suportar uma frustação extrema.
O filme tem até um final feliz, pois Pi consegue separar-se do tigre que havia nascido nele. Poderia ser outro o final, tendo Pi de conviver para sempre com o tigre em que havia se transformado. Pi viveu para contar a história. A chave do filme está quando Pi pergunta ao reporter que história ele queria ouvir: a que tinha os animais como personagens – a fábula – ou a história real, dos homens.
Sai do cinema com o estômago embrulhado.
Enfim, ainda não assisti ao filme “Amor”, que você menciona. Por se tratar de filme europeu, tenho por ele certa predisposição. Os estados da alma não requerem efeitos especiais para serem explorados. Veja por exemplo os filmes dos irmãos Dardenne, “Le fils” e “Le gamin au vélo”. São, à sua maneira, filmes também muito violentos. Mas há maneiras e maneiras de expor a violência.
Grande abraço, José Armando (Dedé)