SOTAQUES CARREGADOS
Em Viagem ao fim da noite, esse romance do pós-guerra ambientado no Ocidente (vai da Europa em guerra à África, passa pelos Estados Unidos para, por fim retornar à França) do início do século passado, Louis-Ferdinand Céline, a certa altura, faz o protagonista, um médico aventureiro e pobre – precursor das peripécias de Sal Paradise, herói de Kerouac em On the road – subitamente adentrar, com seus dois companheiros de viagem, um luxuoso barco ancorado num rio do sul da França, onde um grupo de aristocratas comemora um aniversário ao som de um acordeom tocado pela dona da “casa”. Narrador de tudo, o protagonista diz:
“O almoço acabava de terminar. Os restos eram copiosos. Não recusamos o bolinho, claro que não! E nem o porto para acompanhar. Fazia tempos que eu não escutava vozes tão distintas. Elas têm um certo modo de falar, as pessoas distintas, que intimidam você, e eu me apavoro, pura e simplesmente, sobretudo com as mulheres deles, e no entanto são apenas frases malfeitas e pretensiosas, mas lustradas como velhos móveis. Elas dão medo, as frases deles, embora inofensivas. A gente tem medo de escorregar em cima delas, só de responder. E mesmo quando assumem ares popularescos para cantarem músicas dos pobres à guisa de distração, conservam esse sotaque distinto que deixa você com desconfiança e nojo, um sotaque que tem como que um chicotinho dentro, sempre, como se precisa de um, sempre, para falar com os serviçais. É excitante, mas isso o incita ao mesmo tempo a levantar a saia das mulheres deles só para vê-la se dissipar, a dignidade deles, como dizem…”
Essa passagem me veio à memória ao ver o último filme de Quentin Tarantino, Django livre. Tarantino, como já disse em ocasião anterior (comentando a respeito de Bastardos inglórios no post sobre À prova de morte), é um mestre na arte das potências da língua – e não só um mestre da violência nua e crua.
Django transcorre no sul dos Estados Unidos ainda escravocrata, quando um escravo tornado livre e exímio pistoleiro (Jamie Foxx) resolve adentrar a propriedade de um senhor de terras (e escravos) todo poderoso se fazendo passar por perito avaliador de lutadores negros, pretensamente assessorando ao seu sócio branco (alemão, pra dizer a verdade, o sempre impagável Chistopher Waltz), que se faz passar, por sua vez, por comprador desses “atletas”. O que ambos querem, no fundo, é resgatar à mulher do primeiro, que o poderoso proprietário, sem o saber, mantém como componente da sua mais preciosa “coleção” de seres humanos negros.
A tarefa é árdua já que não basta serem ambos craques da pistola e do laço, mas, também terem que ser capazes de engambelar o terratenente (vivido, com louvor, por Leonardo di Caprio) e o seu ardiloso capataz negro, que tudo percebe ao mesmo tempo em que se faz passar por sofrido e cândido idoso. É necessário que ambos sejam bons de língua, que sejam tão rápidos e tão afiados nas suas chicotadas quanto esse ator que vive o capataz, o mestre dos mestres quando o assunto é esse órgão que carregamos dentro da boca, um ator ícone sem o qual Tarantino não teria conseguido dizer o que já disse, ser o que é: Samuel L. Jackson.
Dentre as cenas memoráveis desse filme, há uma que merece destaque e que ocorre quando Django chega na fazenda com a comitiva do proprietário. O capataz vivido por Jackson sai para recebê-los e quase cai de costas quando o patrão lhe ordena a tratar Django tal qual um hóspede branco. A surpresa é enorme e Jackson puxa todo o seu rigor exclamativo e praguejante, já evidenciado em Pulp fiction, Jackie Brown e Kill Bill, vol. II, a fim de demonstrá-la. Mas eis que descobrimos, um pouco mais adiante, que esse “sotaque” que amolece a todos – inclusive a nós espectadores, que passamos a nos sentir mais “em casa” – é uma mera armadilha, que o seu portador é, na verdade, um refinado estrategista a serviço do patrão.
Isso tudo, o sul dos Estados Unidos, a escravidão, o sotaque e a violência que ele pode esconder, é algo muito distante de nós? Creio que não. Saí do filme pensando no caso de um político local que se faz passar por muito matuto, mas que manteve durante anos – e ainda não desistiu, parece-me, de fazê-lo – um sólido poder sobre esta cidade onde moro, a moderna e quase científica capital da República. Esse político tem, no seu círculo mais íntimo de assessores, seres de extrema finesse, raposas tão vivas que nada fazem para modular o linguajar falsamente bronco do “patrão”, pois sabem que ele é um ingrediente fundamental da fórmula que os mantém há décadas, talvez séculos, no poder.
E, bem, isso me traz ao outro filme que vi recentemente e que tem algo a ver com tudo isso. Trata-se de O som ao redor, do brasileiro Kleber Mendonça Filho. Saí desse filme atordoado, como se o mar do Recife – onde o filme transcorre, e que aparece numa cena noturna – tivesse me dado um tremendo caldo.
Qual o seu segredo? Tudo começa calmamente, vamos aos poucos nos ambientando no cenário de um quarteirão classe média recifense, com prédios de apartamentos e algumas casas, grande parte dos quais são de propriedade de uma família, à frente da qual está uma espécie de senhor do engenho, que mora num desses apartamentos, mas cuja vida ainda é pautada pelo que acontece no restante das suas propriedades rurais. Quem administra as coisas no plano urbano é um neto seu, que lá também vive e se dedica a percorrer a “propriedade” da família, esse quarteirão, não se furtando de manter tudo, inclusive o vandalismo de um primo seu, sob um certo controle.
Num dado momento, um rapaz bate à porta dos moradores desse quarteirão – e, claro, à porta do seu “dono” – com a proposta de, mediante um cotização da parte de todos, fornecer, com uma equipe devidamente preparada e sob a sua supervisão, serviço de segurança coletiva. A comunidade topa e o que temos a partir de então é o desfilar de situações cotidianas, de coisas corriqueiras, de um fluir doméstico, ora engraçado, ora carregado de alguma tensão, sempre pontuado por sons, que nos lembram que, para além daquilo que vemos no nosso campo imediato de visão, há algo a mais. Tudo poderia não passar disso, dessa languidez, não fosse o desfecho que, obviamente, não vou revelar qual é.
Mas o que é que há de parecido nesse filme pernambucano com os filmes de Tarantino? Em primeiro lugar, eu diria que a grandeza dos atores, que fazem, tal qual um Samuel L. Jackson, com que nos sintamos em casa. Não que todos desfiram chicotadas a torto e direito, mas nos momentos em que isso se requer, eles não negam fogo, são afiadíssimos, precisos, impressionantes.
E é justamente por eles, pelas suas línguas – e pelo todo das suas expressões que, repito, nos deixam muito à vontade, crentes na veracidade do que vemos – que creio que se move algo que também se desloca em meio dos filmes de Tarantino: uma reflexão aguda a respeito do poder, a respeito do seu exercício efetivo, diuturno, móvel e sagaz.