O DESBUNDE, AO QUE PARECE, ACONTECE DE MEIO EM MEIO SÉCULO
Foi o meu amigo Denilson Lopes quem deu o aviso no facebook (coisa pouco usual em se tratando desse professor e autor de inúmeros ensaios sobre cultura contemporânea): um filme italiano, comparável a 8 e ½ ou Roma do mestre Federico Fellini, com resenha no NY Times em que é resgatado Walter Benjamin e seu flanêur baudelairiano, está em cartaz. Fui ver A grande beleza, de Paolo Sorrentino, com a intuição de que estava prestes a ver algo muito bom, marcante, apesar de não ter absolutamente nenhuma outra referência a respeito desse cineasta, salvo a já mencionada; e não me enganei. Quando, já pro final, numa cena mágica na faustosa sacada do apartamento do protagonista, a moça do casal que sentou a meu lado exclamou “puta merda, que filme!”, eu só pude lhe ser grato, por expressar o que eu também estava sentindo.
Jep Gambardella, magnificamente vivido pelo ator Toni Servillo, é, certamente, um personagem para ficar na memória. Jornalista e escritor de um livro único, mas proverbial, é um vencedor na vida: aos 65 anos, comemorados em vibrante e concorrida festa logo no início do filme, é amigo, como será visto adiante, dos guardiões das belezas (e riquezas) escondidas de Roma, cidade que parece lhe pertencer. Seu apartamento, por exemplo, onde reúne seus amigos, dá de frente pro Coliseu. Seu livro foi resenhado (favoravelmente) por ninguém menos que Alberto Moravia, as mulheres do jet-set (viria daí seu nome, após uma troca do “t”pelo “p”?) sucumbem como carneiros ao brilho de sua curiosidade misturada à sua sensibilidade – até mesmo o seu enigmático e taciturno vizinho não resiste e lhe entrega, a certa altura, o segredo do nome de seu alfaiate. Sua chefe, editora da revista para a qual escreve, é sua amiga e confidente, e juntos eles riem dos pontos de vista e das tiradas que ele expressa nas suas reportagens.
Contudo, o que lhe dá maior estatura aos nossos olhos, no decorrer do filme, é algo outro, que se conecta a todas essas qualidades acima pela via do savoir-vivre: é a forma como se entrega ao que é mesmo belo, é a sua devoção a isso quando lhe aparece pela frente, mesmo que na forma de uma stripper cinquentona, ao mesmo tempo que a sua não hesitação em rejeitar de imediato tudo aquilo que pretende sê-lo, mas não é. Sim, isso tem mesmo a ver com Baudelaire e com Benjamin, caso queiramos resgatá-los, mas, antes, comecemos por Fellini, de quem peguei o desbundante 8 e ½ para ver, achando que já o tinha visto (mas não tinha, obrigado Denilson).
Não vou, aqui, resumir esse filme obrigatório e genial. O que, sim, pode ser interessante é sondar quais os pontos em que esses dois filmes, distanciados um do outro por cinquenta anos, se tocam, afastando-se. São, ao meu ver, três: Roma e sua “fauna” (o termo é de 8 e ½) herdeira de um milenar paganismo, a presença da Igreja Católica e, por último, a profissão de um e de outro protagonista, ambos, sendo intelectuais, a lidar com aspectos de uma mesma substância: a verdade.
Grande parte do filme de Fellini ocorre não em Roma, mas num balneário próximo, onde Guido, o protagonista, está hospedado, tratando-se nas termas de um dos seus hotéis, ao mesmo tempo em que todo o staff do filme que ele realiza, enquanto diretor. O set de filmagem e o balneário se confundem, mas ambos inalam, no fundo, os ares que só podem vir dessa cidade berço de uma civilização, em que a moral já sofreu tudo o que tinha pra sofrer. Roma é incurável: eis o que parece nos dizer esse filme já no seu final, quando todo o projeto cinematográfico, com sua incrível e dispendiosa base de lançamento de naves espaciais, fracassa, mas toda a equipe se põe a dançar alegremente na forma de trenzinho. Esse contexto, encarnado e portador da quebra de toda e qualquer ilusão, é o habitat de Jep Gambardella, nada deixando isso mais claro do que a cena em que uma fila de pacientes, dentre as quais uma freira com hiperidrose nas mãos, é atendida por um médico curandeiro que aplica injeções de botox como se fossem passes de um pai-de-santo. Filmar isso, esse carnaval cotidiano, tudo indica, só mesmo sendo italiano, o que parece querer dizer (sendo) capaz de lançar mão de travellings geniais, presentes em ambos esses filmes. Ninguém mais, a não ser esses mestres que descendem de Da Vincis, Michelangelos e Maquiavéis, me desculpem, entrega o que eles entregam…
No trato com a Igreja Católica, começamos a perceber aquilo que pode representar um distanciamento entre um e outro filme. Em 8 e ½ vemos o esforço por parte de Guido em obter dela um salvo-conduto para incorporar prelados ao filme, como que a buscar, no cinema, uma forma de superação de necessidades espirituais cuja única referência ele (e a sociedade italiana) tinha na liturgia e na doutrina católica – bem como a discussão concomitante, com o roteirista do filme, quando esse lhe alerta para o impossível da tarefa. Em A grande beleza, a Igreja também dá suas caras, só que na dupla e ambivalente figura de, por um lado, um cardeal que só se interessa em dar receitas culinárias e, por outro, de uma santa que, em suma coerência com o voto de pobreza feito, dialoga quase silenciosamente com a fina, requintada espiritualidade do protagonista, ambos (ela e ele, protagonista) sendo capazes de reconhecer a importância das coisas (como as raízes que ela come) à medida em que se apresentam. Uma dimensão espiritual, de uma nova ordem, sim, é viável, existe.
Por último, a questão da profissão, que também desemboca no tema do flâneur baudelairiano. Em Jep, ao contrário de Guido – cuja invencionice talvez nunca venha a ser perdoada a não ser quando restrita a território romano (ou cinematográfico) –, temos uma potência, ou seja, aquilo que propriamente entusiasmava a Baudelaire. Este via em Constantin Guys, pintor contemporâneo seu, alguém dotado da capacidade do novo na medida em que, para além da sua atividade diurna de plena e profunda observação da vida ao seu redor, do “real”, praticava, à noite, na sua pintura, a resolução, a saída, a fuga, em última instância, em direção a novas realidades possíveis. Jep, jornalista, repórter, é alguém que não se engana, que percebe as agruras e o peso do estar vivo – eis aí, tenho tido a oportunidade de perceber, quase um ethos dessa profissão –, mas tudo isso não o abate (ao contrário da maioria dos seus colegas): ele consegue escapar e se refugiar lá onde a beleza, que não é nunca grande, mas efêmera, acontece. É isso – essas pausas que, na verdade, são uma filosofia redonda e que se faz complementar pela rejeição extrema e sem dó da mentira, já mencionada acima como o que pretende ser belo, mas não é – o que lhe permite, de fato, como uns flamingos que a certa altura aparecem na sua sacada, alçar longínquo voo.