PERCEPÇÕES BRITÂNICAS DE UM MUNDO MECÂNICO
Fui convidado a participar, graças à atividade que aqui desenvolvo, de algo que eu não sabia que existisse, ainda que desconfiasse: uma “cabine de imprensa”. O que vem a ser isso? Trata-se da projeção de um filme que ainda vai estrear, para a qual algumas pessoas que escrevem na mídia, bem como outros convidados, têm a entrada franqueada. Foi então numa bela manhã de segunda-feira que, reclinado numa das poltronas do melhor cinema da cidade (fora o Cine Brasília, cujas poltronas já me coube lamentar aqui) e na companhia de uma dúzia de outros seres envolvidos com cinema por meio da escrita, assisti a Sob a pele, do inglês Jonathan Glazer. Minha única referência a respeito (não li o release que me foi enviado) era a de que o filme contava com a Scarlett Johansson, o que já era motivo de sobra para ter dito que “sim” (e agora, numa rápida espiada ao IMDb, vejo que se trata do mesmo diretor de um outro filme de que também gostei bastante quando o vi anos atrás, Reencarnação, de 2004).
Antes, contudo, de entrar na questão dos méritos do filme, deixem-me que lhes diga que, um pouco antes e ao longo da sua projeção, fui assaltado pela pergunta: e se eu não gostar, vou, ainda assim, escrever a respeito? Uma torcida a favor de Glazer – talvez um pouco mais intensa do que aquela que, em condições normais, carrego comigo quando vou ao cinema –, confesso, se iniciou em mim naquele instante. A regra que impus a mim mesmo, de só escrever a respeito de coisas que me entusiasmem, essa eu fiz questão de transmitir a quem, gentilmente, me convidou e reafirmo-a aqui, perante meus leitores. Então, resta a questão da torcida; afinal, um crítico, como uma espécie de juiz, não tem que ser imparcial? Bem, a esta altura, só o que tenho a dizer sobre isso é que a torcida por bons filmes (e, de resto, por boas obras de arte) é algo sem o qual ninguém se dedicaria a escrever sobre – ou mesmo apreciar – filmes. Ela é inerente a quem vai ao cinema (ou a uma exposição, show, peça de teatro, etc.).
Vamos a Sob a pele. O que é que me fez ter aquela sensação de que estar ali, assistindo, era o melhor que eu podia ter escolhido para mim naquela manhã? O filme trata de uma alienígena (vivida por Johansson) que tem como função seduzir homens incautos num centro urbano da Escócia (não anotei se em Glasgow ou Edimburgo), integrando uma equipe da qual fazem parte outros alienígenas em “trajes” masculinos e pilotando motos. Essa bela alienígena dirige uma van com a qual oferece caronas aos incautos. Os que topam, ela leva para uma casa, dentro da qual ela começa a tirar a roupa. O incauto faz o mesmo, mas, na medida em que avança pra cima da isca, vai lentamente afundando numa espécie de lama petrolífera, da qual não mais emerge. Essa é, digamos, a mecânica, que vemos se repetir como se estivéssemos diante de uma linha de produção. Com o tempo, vemos que essa linha tem uma finalidade extrativa, um pouco equivalente a um matadouro hi-tech.
A incrível sonoplastia do filme nos remete, a princípio, a algo que beira o terror. A trama corrobora isso, fazendo-nos lembrar do tema da viúva-negra, já visto anteriormente no cinema. Mas eis que acontece o inesperado: uma deserção por parte dessa gélida alienígena que, até então, tinha se utilizado de somente três procedimentos humanos banais para dar cabo de sua função: dirigir, conversar, tirar a roupa. Eis que o filme entra, então, em ritmo de Blade Runner ou, até, de Asas do desejo, filmes que focam a vontade – a partir da súbita percepção, por parte do “alienígena” em questão, do milagre em que isso se constitui – de estar sob a pele de um humano.
Mas se Sob a pele fosse meramente um entrecruzamento de gêneros fílmicos já conhecidos, seria muito pouco, seria um fracasso. Como é que ele se eleva acima disso? Com bela fotografia (incrível, pra dizer a verdade), boa atuação androide de Johansson, efeitos especiais de fato especiais? Creio que não: são duas coisas que tornam esse filme algo de notável e de absolutamente contemporâneo.
A primeira delas tem a ver com a trama mesmo. Como disse acima, os alienígenas chegam à Escócia com uma tecnologia extrativa “de ponta”. Faz parte dela, inclusive, o conhecimento daquilo que desperta na matéria prima (os homens) uma vulnerabilidade: o desejo, a cobiça sexual. Frente a essa avançada tecnologia, pensa o espectador, não há nada que se possa fazer: eles vão ganhar, não dispomos nós, humanos, de nada à altura. Contudo, note-se bem o que é que faz com que a bela alienígena decida desertar. Trata-se, eu diria, da percepção de algo que escapa redondamente da tecnologia e do seu poderio. Trata-se da beleza – e, mais precisamente, justamente no momento em que ela, a alienígena, se depara, num humano sua vítima, com a notável, escancarada, ausência dessa. A pele, no processo extrativo da tecnologia que vem de fora, é o que sobra, não tem valor algum; e a pele é, justamente, o que reveste, no humano, um interior que, sem ela, nada diz, porque apenas tangencia a beleza.
O segundo e derradeiro aspecto de Sob a pele a alça-lo bem acima da média é um aspecto formal. Trata-se de um experimento cinematográfico que chega muito próximo da fronteira com o cinema mudo. Sim, porque notem que toda essa trama acima é contada quase que somente com o recurso da visualidade e da montagem (além, como, já disse, da sonoridade)! Blade Runner, fiz questão de verificar, tem um longo texto introdutório e diversos e variados diálogos. Asas do desejo, também – o anjo que sobrevoa Berlim tem uma espécie de “supervisor”. Já o filme de Glazer, o que tem de diálogo são as conversas dentro da van, que são meramente procedurais, quase um protocolo ou um rito necessário. Quando os dois alienígenas principais (Johansson e um motoqueiro que passa a persegui-la após a deserção) se encontram face a face, nada é dito. Tudo, ou quase tudo (eis que ocorre, como em Blade Runner, uma “transa” com um humano), é ato. E isso a tal ponto, mas aí já acho que é um pouco de loucura minha, de (não sei se porque a Escócia é próxima da Irlanda) haver um momento desse filme em que tive a sensação de que ele poderia ter sido escrito ou encenado por um Samuel Beckett.
Andrés:
Mesmo sem ter visto o filme, gostei muito do comentário. Vibrante . Abraço
Andrés, você ama o cinema e nos transmite isso. Pelo que você nos conta não é o meu tipo de filme, mas o seu texto está muito bom e é o tipo de crítica que gosto de ler. Um abraço Cléa
Cleita, você sempre a me dizer coisas de que gosto. Obrigado! É uma honra tê-la como leitora.
Andres, faltou destacar a atuação da Scarlett Johansson. Simplesmente sensacional! Basicamente com os olhos: olhar neutro, indiferente, sem expressão humana.
Ines, ficho feliz que alguém do clã dos Sá tenha visto, rsrs. E você tem razão quanto à atuação e aos olhos. Mas entenda a minha dificuldade em prestar atenção só neles. rsrsrsrs. Abraço e obrigado pela leitura e comentário.