O ABAPORU QUE SE ESCAFEDEU
Em A forma difícil – ensaios sobre arte brasileira, o crítico de arte Rodrigo Naves lança, numa proposta cuja natureza diz ele ser “tateante” – e em cujo “andamento (…) encadeamentos por demais desenvoltos e tons superlativos” são “desaconselhados” –, uma importante e instigante hipótese: a de que a arte brasileira (em particular as artes plásticas, objeto de sua análise) padeceria, comparativamente ao que se produz lá fora, de uma “morosidade perceptiva”, um “permanente cismar”, uma, em suma, incapacidade de afirmação plena que conduz sempre a uma contenção. Uma ampla gama de artistas, sempre com suas obras a acompanha-los elucidativamente, de Debret a Clark e Oiticica, passando pelos modernistas, por Volpi, Guignard e Dacosta são ali analisados sob essa mesma suspeita. Sobre esse último, por exemplo, lê-se:
“Milton Dacosta, um de nossos maiores artistas, praticamente inverte o sentido da arte de Mondrian. Suas composições e construções da década de 50 criam uma espacialidade negativa, que retira seu poder da capacidade de subdividir-se progressivamente, em lugar de se projetar para fora. São estruturas admiráveis, não resta dúvida. Mas ameaçam ceder a qualquer momento.”
Já no caso dos mais recentes Lygia Clark e Hélio Oiticica, diz Naves:
“A tentativa de criar uma arte que abandonasse a atitude contemplativa da tradição e que se abrisse para a vida – uma interrogação que tem origem numa discussão estritamente modernista sobre os limites da relação figura e fundo – conduz a experiências com uma plenitude drástica. Progressivamente, seus trabalhos vão circunscrevendo uma totalidade imune a qualquer exterioridade. Os espaços generosos armados pelas obras do início (…) dão lugar a uma exploração da intimidade do mundo. O corpo deixa de se apresentar como lugar ambíguo que medeia e baliza a construção do espaço – numa relação complexa entre interior e exterior – e se converte em pura sensorialidade, magnetizado por estímulos que o remetem a si mesmo. Em sua trajetória de dispersão – a tentativa de aproximar arte e existência – os trabalhos descrevem um movimento paradoxal, que identifica vida a proteção, ainda que uma dilaceração acentuada os acosse por todos os lados.”
A arte brasileira teria uma “dificuldade de forma” e uma “natureza remissiva – a necessidade de constantemente devolver as aparências a um tímido questionamento de sua existência”, a raiz disso, para o autor, residindo na “sociabilidade pouco definida” que marca a sociedade onde é produzida. Uma última citação desse genial trabalho, a título de resumo:
“Essas obras tímidas supõem um modo suave de moldar as coisas, e estão mais para um artesanato amoroso ou para um extrativismo rústico do que para a conformação taxativa da indústria. Contudo, esse ideal meigo que defendem conspira contra suas expectativas, já que essas aparências amenas e essas formas frágeis não podem se opor à opressão do real, que os coage sem cessar.”
Tudo isso me veio à mente ao assistir Praia do futuro, o último filme do diretor brasileiro Karim Aïnouz.
Do que trata esse filme que conta a história de um soldado do Corpo de Bombeiros do Ceará, homossexual, que começa o filme como salva-vidas na praia que dá nome ao filme? De um estado permanente de deriva, como li em algum lugar? Da temática gay, como foi perguntado ao protagonista Wagner Moura (“o que vem a ser um filme gay?“ foi a sua resposta)? Pode ser, talvez, tudo isso. Mas eu cá recebi essa história, que faz o bombeiro salva-vidas se mudar para Berlim para viver com um companheiro alemão que conheceu no afogamento que abre o filme (e dando, assim, as costas à sua família) como um manifesto contra a timidez a que se refere Naves.
Por quê vias isso se daria? Em primeiro lugar, pela exposição inicial e crua da homossexualidade do personagem principal. Uma condição que é vivida sem trejeitos de ordem alguma, quebrando, assim, um quase lugar-comum da cinematografia local. O sexo ocorre entre o brasileiro e o alemão sobrevivente tão logo eles saem da delegacia onde o desaparecimento do afogado (um outro turista alemão) é registrado: sim, no Brasil, como, de resto, no planeta inteiro, há homens homossexuais, cuja homossexualidade não se resume a estereótipos, mas consiste numa preferência sexual que efetivamente acontece. (A essa altura, com pouco menos de dez minutos do início da sessão, vi gente saindo do cinema.)
Em segundo lugar, acompanhando a sequência dos acontecimentos, essa afirmação primeira tão “chocante”, se faz acompanhar pela migração; não fica no remoer manso, “reconfortante”, abrigado dos perigos, que tende a puxar o protagonista de volta ao aconchego da família, da mãe, do irmão. Naves, ao falar de Tarsila do Amaral, diz sobre os seres tão estranhos que compõem a sua pintura:
“A ingenuidade das folhas de papel celofane, a singeleza dos tons caipiras, tingem de doçura esses bichos arredios: ovos, cobras, corpos desmedidos, vegetações substancializadas. O que faz nossa particularidade tem traços absolutamente esquisitos. E no entanto eles estão prontos a vir comer em nossa mão, tão logo solicitados. Porque somos igualmente estranhos, sabemos tratar familiarmente mesmo esses ovos metafísicos, plenos e portáveis.”
A mudança – e a não menos importante permanência – de Donato, o protagonista, para Berlim é um segundo encarar a forças centrípetas bem claras, mas raramente reveladas; como se o Abaporu resolvesse, subitamente, se tatuar ou, mesmo, plantar bananeira, ao invés de meramente, cordatamente, sentar ao sol.
Por fim, quando Ayrton, o irmão caçula de Donato – e alavanca da sua “esquisitice”, que possivelmente foi o que chamou a atenção de Konrad, o alemão – chega, anos depois (e falando alemão) a Berlim para tirar a limpo o gesto radical do irmão, temos, enfim, uma tematização absolutamente nova: a do medo e a da coragem que se requer para enfrenta-lo. Há aqueles que reagem ao perigo, diz o irmão mais velho ao mais novo, fazendo de conta que ele não existe; e há aqueles que, diante da constatação da grandeza desse, vivem acuados. Isso pode soar como algo que diga exclusivamente respeito a homossexuais (coisa que Ayrton não é), que, conforme se vê cotidianamente nos jornais e no dia-a-dia, enfrentam uma infinidade de discriminações. Mas, também, creio que diga respeito, à luz do que Naves coloca em A forma difícil, à expressão, no sentido mais amplo e mais irrestrito, do ser brasileiro.
A sociedade brasileira é uma sociedade violenta, disso não cabe a menor dúvida. Há alguns anos atrás vivi em Barcelona e me espantou que certas discussões que presenciei na rua e na televisão não tivessem descambado em agressões físicas ou até mesmo em morte. Pensei, em tais momentos, que, no Brasil, já o teriam. E assim por diante. Não espanta que o gigante Wagner Moura queira se dar a oportunidade de viver no exterior por uns dois anos, como acaba de declarar. Dizer que suas críticas à política brasileira atual são improcedentes, como estão dizendo alguns – como se nunca tivéssemos estado tão bem – me parece equivaler àquela postura do seu personagem, Donato, que, durante um bom período de sua vida, meramente fingiu que o perigo não existia.