CHECAR PARA NÃO SE CHOCAR
Mais uma vez, Asghar Farhadi nos apresenta um filme de gente grande: O passado. Já comentei aqui o seu anterior, A separação; e quando comento um filme – como ocorre, de resto, em outros afazeres discursivos– após um tempo, acabo não me lembrando de imediato aquilo que afirmei. Antes de partir para esta escrita, portanto, fui no texto anterior para ver o que lá estava. Contudo, um traço em particular, a vincular um filme e outro, me ocorreu ao longo da projeção de O passado: a suave, obstinada e quase impassível capacidade de Farhadi de, em torno de uma dada situação familiar (ou seja, comum a cada um de nós, haja vista que até um Robinson Crusoé tem família, nem que seja na lembrança), ir apertando, como quem gira um parafuso, cada vez mais fundo em direção ao que nos constitui no mais íntimo e que pode ser traduzir com uma única palavra: dignidade.
Antes de entrar nisso, porém, deixem-me lhes chamar a atenção para como o fato de este novo filme desse cineasta iraniano se passar em Paris praticamente não alterou uma das características mais marcantes do filme anterior, inteiramente passado em Teerã. Refiro-me ao universo da vizinhança de um lar e aos personagens que nele rondam. É o mundo onde se educa alguém, em geral os filhos: a escola, a rua, a lavanderia, a farmácia. Isso, há tanto numa quanto em outra cidade – e a tarefa pedagógica é universal, certamente.
Sim, de novo, temos crianças num filme desse cineasta (três, desta feita), a ocupar um lugar certamente não-secundário. São o juiz, no fundo, com seus ouvidos sempre alertas, daquilo que os adultos “aprontam”, nisso se igualando a nós, espectadores. O cinema de Farhadi é um cinema amigo da pedagogia, antes de tudo.
Mas seria um cinema enfadonho se fosse só isso, se um filme repetisse o outro, com meras pequenas variações se apresentando, a cada estreia, como novidade. O passado é um filme que merece ser visto porque trata de um tema diferente, quando não novo: aquilo que cada um carrega consigo ao iniciar novos relacionamentos amorosos ou afetivos. Desde o momento inicial do filme, vamos, progressivamente, inferindo, a partir das situações concretas que se apresentam, quem é quem, qual o estado atual de um laço (e do respectivo emaranhado onde ele se insere) que nos é mostrado – e que é algo que os próprios personagens, alguns mais outros menos, mas todos invariavelmente, vão também fazendo, confirmando, a partir de diálogos e atitudes.
Assim, mais uma vez, ponto para Farhadi no quesito realidade. Pois a vida não é mesmo assim? Quanta coisa, enquanto não é comunicada, dita de forma expressa, não permanece como algo passível tanto de um sim quanto de um não, conforme a fantasia de cada um? Não temos que, constantemente, checar se aquilo que vemos e ouvimos corresponde ao que o outro também vê e ouve? No filme, um fato violento ocorre, deixando atrás – ou à frente – de si um silêncio (já que se trata de um suicídio, que não quis fornecer pistas a ninguém, talvez acreditando na evidência auto-eloquente dos motivos). Esse fato vira um passado, mas também algo que acaba determinando o presente e um futuro, tal a força do silêncio que instaura. Ao mesmo tempo, esse passado parece só poder começar a ser desnovelado no momento em que um outro passado entra em cena: o ex-marido iraniano que chega de Teerã para, quatro anos depois da separação, vir assinar os papéis do divórcio com a francesa, mãe de duas jovens.
A vida pede que decidamos, às vezes em alta velocidade. No mundo globalizado, parece que isso se acentua ainda mais, com a sua permissão a que nos desloquemos horizontalmente, espacialmente: precisamos confirmar, a cada passo, tais deslocamentos. E, dentro disso, muitas vezes, não resta tempo para os devidos esclarecimentos, o devido processar, íntimo (ou extimo, como diria Lacan). Quando isso não é feito, o mesmo fantasma que se forma a partir de um suicídio intransitivo, pode vir a se formar. O mundo contemporâneo pode vir a ser um mundo repleto de fantasmas.
Que remédio teríamos para tal? Eis que volto à dignidade, acima apontada como o alvo desse filme – e, talvez, do próprio cinema de Farhadi. Assim como ocorre com A separação, não há em O passado, personagens que não a busquem. Seja o iraniano que se dá o trabalho de voltar à cidade onde morou para concretizar uma separação (ao invés de cuidar disso à distância, como lhe sugere um amigo), seja a mãe francesa, que, tal o personagem “equilibrista” do filme anterior, se desdobra em quatro ou cinco papéis, exigindo, em cada um, o máximo de verdade (de si e dos que estão à sua volta), seja o novo amante, semi-viúvo, da mãe francesa (e pai de um garoto), que luta até o último instante – e por meio de todos os recursos – por ter a esposa suicida de volta; temos sempre diante de nós, nesse filme, pequenos gigantes morais.
Gosto cada vez dos textos do amigo Andres