SOMOS TODOS ÍNDIOS, À EXCEÇÃO DAQUELES QUE NÃO SÃO[*]
PARATY – Ainda não li o que os jornais dirão a respeito. Pode ser que deem a devida divulgação, pode ser que nem falem sobre o que foi dito (ante)ontem pelos antropólogos Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro na mesa de número 14 da Flip, intitulada “Tristes trópicos”, tal a intensidade da pancada que todos os que a vimos (ou acompanhamos pelo telão) recebemos. Eles vieram na sequência de uma outra mesa, em que dois ficcionistas, um israelense e outro mexicano, souberam muito bem, instigados pelo mediador tarimbado, fazer analogias entre as zonas conflagradas das quais proveem – e das quais escapam com a ajuda da ficção e do humor.
A combinação de ambos os brasileiros foi perfeita: o primeiro, com perfil mais combatente (dirige uma ONG, o Instituto Socio Ambiental), deu um panorama da situação atual da causa indígena no Brasil, o qual resulta num quadro de forte ameaça, dada a PEC 215, que tramita no Congresso Nacional e que altera a prerrogativa da demarcação das terras indígenas, abrindo-a para esse mesmo Congresso, apinhado de defensores do agronegócio. Mas a ameaça não vem somente daí, dessa questão fundiária, como também da parte ambiental, com Belo Monte e demais usinas hidrelétricas que estão em construção na Amazônia – e que atendem a um exclusivo interesse: o das grandes empreiteiras que estão “na área” desde o período dos governos militares.
Competência não falta – e não faltou – a Ricardo. A questão é que junto com ele estava Viveiros de Castro, que assumiu o papel de não só ratificar esse panorama sombrio, mas de elucidar o seu significado.
Para quem não o conhece, Viveiros de Castro é, na minha opinião, uma das três ou quatro grandes cabeças hoje em atividade no Brasil – este país que as possui aos montes e que não precisa de mais do que as que já tem. Dedicou-se e dedica-se ao estudo dos povos ameríndios e foi quem, junto com a equipe que liderou no Museu Nacional, aprofundando as percepções de Claude Levi-Strauss, lhes descobriu sua forma perspectivista de se relacionar com o mundo à sua volta. É sua uma trajetória intelectual de dar inveja, pois essa descoberta desnudou perante nós, ocidentais, uma modalidade de presença no mundo, uma metafísica, que pode ser o que buscamos, há já algum tempo (vide um Heidegger, por exemplo), como saída para o nosso deserto espiritual, que só cresce.
Sendo essas as suas fantásticas credenciais, Viveiros nem sequer as tocou; entrou direto a solar na base rítmica que havia sido estabelecida pelo seu companheiro de militância indigenista. Começou por dizer que temos aqui dentro uma Faixa de Gaza, a que ninguém dá a menor bola, e um genocídio em curso, no Mato Grosso do Sul, onde as populações guaranis tem a simples beira de estrada, entre as imensas plantações de soja e cana que lá se estabeleceram, como solo nativo.
Mas isso foi só uma parte, uma mera abertura para o que estava por vir, relativo às consequências dessa ameaça que ronda a populações indígenas no Brasil. Ela, no fundo, é uma ameaça à própria sociedade brasileira, à própria civilização. O mundo, para Viveiros, dentro de muito pouco tempo, a seguir do jeito que vai, com seu consumismo, sua presunção e falta desinteresse pela diferença, simplesmente se extinguirá, entrará em colapso.
Nesse quadro, talvez os nossos únicos consultores, os povos ameríndios, cujo mundo acabou há cerca de quinhentos anos atrás – num “serviço” o qual estamos, ao que tudo indica, ainda empenhados em concluir – estarão possivelmente dizimados. Nós, ou o que restar de nós, seguiremos tal qual eles estão hoje, vivendo em faixas cada vez mais estreitas e precárias. Faixas que nós mesmos teremos nos imposto.
A contundência dessa colocação pode porventura nos levar a pensar que o que era para ser uma festa (o “f” de Flip), tenha adquirido, nessa atual versão – pois além dessa mesa houve uma anterior, à qual não pude assistir, intitulada “Marcados”, em que o drama dos ianomâmi foi evidenciado por um líder dessa etnia e por uma fotógrafa que os acompanha há décadas –, um tom grave e, por fim, estranho ao mundo da ficção, onde, como disse o – tudo indica, genial – escritor israelense Etgar Keret, você pode controlar tudo, você está no comando. Contudo quem teve a oportunidade de ouvir a palestra desse último, pôde ouvir, também, que ele concebe a sua atividade, que depende totalmente da imaginação e que se reveste com um transbordante humor, como uma forma de sobrevivência. E mais – o que nos leva à zona mais profunda dos que nos foi dito pelos dois indigenistas brasileiros –: que a sobrevivência que conta não é a física (e vejam que se trata de alguém que vive onde vive e que teve parentes seus dizimados pelo holocausto), mas a do espírito.
Sim, a Flip é uma parada de gente um pouco mais educada do que a que costuma frequentar estádios (à exceção dos japoneses, é claro), raves ou as ruas do carnaval, deixando atrás de si montanhas de lixo. A bela Paraty bem que se arma, precariamente, para atender uma horda que demanda serviços e produtos imediatamente e sem delongas que excedam a entrega do cartão de crédito para pagar a conta. Mas, creio que aquilo que se diz nas diversas mesas que compõem a sua programação, é algo de tal importância e beleza, que nada disso outro, realmente, faz alguma diferença.
[*] Frase cunhada por Eduardo Viveiros de Castro, e que começa com “No Brasil…”. Em parte, pode-se entendê-la a partir da percepção que todo sul-americano (ainda que seja alguém que, como ele, detém um reconhecimento acadêmico global) tem ao chegar na Europa e descobrir que, lá, ele não é considerado sequer um ocidental.
A supremacia da reminiscência da lógica, da ética e do ethos coloniais no Brasil é uma aberração. Vou me deter ao Brasil embora desconfie que essa situação se reproduza em muitas outras partes.Trata-se de um ordem de ignorâncias organizadas para atender uma pequena parcela da população e preservá-la cega, com a visão obnubilada pela ilusão de que representam o todo, a maioria, os melhores , ou qualquer coisa semelhante que justifique a divisão de oposição entre um “nós” e um “eles” em relação a direitos e legitimidade de existência. No centro disso tudo há apenas o egocentrismo festejado e promovido como valor;a adoração secular de um “EU” como se fosse algo sagrado. Aliás, o que a cultura ocidental tem a oferecer no século XXI sobre o espírito, sobre a sacralidade de algo? Os objetos de desejo material, a imagem e os centros de consumo, tornaram-se o que se considera sagrado e valioso de fato. Essa é a força propulsora do mainstream das sociedades assoladas pela colonialidade de suas percepções de mundo. Os índios simplesmente não se encaixam nessa lógica, são vistos como impedimento do desenvolvimento – quê desenvolvimento? Como? para onde?- assim como já foram vistos antes, assim como foram vistos os negros. E, basta sair desse estreito quadrado de percepção do mundo, basta viajar para outro país para vermos que essa idéia de desenvolvimento ainda dominante, não correspondente à maneira de viver da maioria da população do planeta. Do budismo aprendi: todos os seres temos direitos iguais de viver neste planeta Terra. Mas, até que reconheçamos, enquanto espécie, esse saber… muitas eras passarão.