OPORTUNAS “RECRIAÇÕES”
Mais um Festival de Brasília está em curso, desta feita de volta a um formato que permite que assistamos a tudo da Mostra Competitiva e à Mostra Brasília, que premia o cinema local – nas últimas edições, uma separação entre documentários e filmes de ficção tornava essa tarefa quase impossível, já que eram filmes demais pra ver. Penso que foi uma sábia decisão. De resto, vê-se mais despojamento na produção: os apresentadores com menos gala e nem mesmo aquela musiquinha, que descobri ser do Quincy Jones, para anteceder a subida ao palco das equipes. O que importa são os filmes – e esses estão tendo divina projeção, acompanhada de som de primeira.
Estamos no terceiro dia desse evento e eu creio que, a esta altura, depois de somente duas noites, o cinema brasileiro já disse a que veio. Tão ao contrário daquilo que o estúpido senso comum sempre repete, é incrível a capacidade que essa entidade tem de nunca nos deixar na mão! Episódios como o 7×1 (ou 10×1, no cômputo de alguns), aqui, digo que são inconcebíveis: o Brasil sempre terá bons filmes a exibir, independente daquilo que as academias norte-americanas ou outras, avaliem. E o que há de bom nessa oferta inevitavelmente passa por Brasília, no mês de setembro.
Dito isso, são três os filmes que, até o presente, garantem a festa. Vamos a eles.
O primeiro é o documentário paulista Sem pena, de Eugênio Puppo, que aborda o nosso sistema penal. Atenção: eu disse penal, e não prisional, ainda que um esteja, numa história que data de aproximadamente cinco séculos e que não é exclusividade brasileira mas ocidental, intimamente atrelado ao outro. No cinema brasileiro, documental ou ficcional, há muita coisa a respeito – ou ambientado em torno – desse último. Romper essa limitação é um primeiro mérito desse filme. Sim, é vital martelar na evidência de que as prisões são, no fundo, fábricas de delinquência, que o sujeito que lá entra, por qualquer motivo que seja, só poderá sair pior. Mas, isso não quer dizer que melhorar as condições dos presídios seja a grande solução, que ela proporcione um fim-de-papo. A discussão é mais ampla e diz respeito à Justiça como um todo; e um olhar mais preciso sobre essa seria um em que deixasse de aparecer como algo enclausurado e distante das mazelas sociais. Em outros termos, é preciso perceber que o Código Penal, por mais útil e necessário que seja, não abrange todos os aspectos daquilo que se pode considerar como justiça.
Sem pena é simplesmente genial ao fazer com que o cinema se insira nesse debate. Dá continuidade, até certo ponto, a um filme como Noticias de uma guerra particular, de Kátia Lund e João Moreira Salles, ao qual assisti o outro dia e me dei conta que continua absolutamente atual, apesar dos seus quinze anos. Aponta para a mesma urgência. Contudo, não se trata de uma repetição, graças à opção pelo uso da fala (dos diversos entrevistados) em off, ou seja, desligada da imagem de quem a profere. Enquanto ouvimos os depoimentos, a história ou a opinião de cada um, o que vemos são imagens desse universo penal, é a câmera a percorrê-lo, detendo-se nele, nas pilhas de papel que o compõem, nos bancos em que as pessoas se sentam, nas viaturas que são utilizadas, nas grades que abrem e fecham, nos bustos dos magistrados. A única exceção a isso é uma audiência em que uma ré, senhora já bem avançada em idade e pobre catadora de latas, expõe seus argumentos frente a uma acusação visivelmente improcedente, de tráfico de drogas. Coisa de arrepiar.
Os outros dois filmes são pernambucanos. O primeiro, um curta, dos incrivelmente jovens Nara Normande e Tião, é Sem coração, uma ficção que se passa numa praia do litoral nordestino e tem um grupo de adolescentes – dentre os quais um que passa férias na casa do primo, que vive nessa praia – como centro. Dentre esses adolescentes está a jovem apelidada com o título do filme, a qual trabalha na pesca submarina – demonstrando, já de cara, uma grande capacidade de prender a respiração debaixo d’água – e, paralelamente, oferece seu corpo para que o restante da turma, toda masculina, usufrua do primeiro contato com o sexo. Narrado assim, parece um filme sem felicidade alguma, incômodo até, ao vincular o garoto de classe média e a menina proletária e promíscua. No entanto, se há laivos de Amarcord (a praia sendo percorrida por uma quase matilha em explosão metafísica e hormonal), o filme que mais vem à memória é A guerra dos botões, o luminoso clássico de Yves Robert, em que vemos uma simbiose alegre e calma, para além do bem e do mal, entre o meio natural e o firmamento da cultura humana por meio de jogos. Uma câmera extremamente ágil faz com que mergulhemos, memória adentro, no domínio que somente as crianças têm sobre os territórios.
Por último, o sob todos os aspectos surpreendente Brasil S/A, de Marcelo Pedroso: um filme que alude à brutal introdução, nos meios tradicionais de subsistência e nas grandes cidades, do maquinário pesado e da automação em grande escala. Não se trata de documentário, mas também não se poderia dizer que seja uma ficção de pleno, já que, ao longo do seu transcorrer, nem uma palavra sequer é emitida pelos personagens! Filme mudo, quem sabe, onde, no entanto, o som – e a música, contado com a presença de uma baita orquestra sinfônica – desempenha um protagonismo – cheguei a ter a sensação, a certa altura, de que, finalmente, o Brasil encontra um equivalente cinematográfico ao gênio que foi Villa-Lobos, fazendo-lhe jus. Mas, antes que isso, acho que esse filme é mesmo um balé, em que, embasbacados, temos a chance de ver até mesmo quatro retroescavadeiras fazerem, cada uma, uma “ponta”, tal como as que as bailarinas clássicas são acostumadas a fazer. Ou, então, um cortador de cana, facão na mão, realizar um tai-chi em que corta, em meio ao sulco deixado pela colheitadeira, no canavial, invisíveis pés de cana. Trata-se, eu diria, de um Koyaanisquatsi à brasileira, em que, a certa altura, já pro final, atinge-se uma sensação lunar, uma espécie de magnetismo (o “som do silêncio”, tal como na música de Simon & Garfunkel que temos, numa das cenas, a alegria de ouvir enquanto vemos devotos a rezar?) a atravessar a experiência humana; algo que eu somente vi presente nos filmes de Andrei Tarkovski.