APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DE UM PONTO SAGRADO
Em geral, uma crítica cinematográfica deve aparecer perto da estreia do filme a que ela se refere. Esse não é o caso aqui, onde pretendo analisar Relatos selvagens, filme argentino dirigido por Damián Szifrón e que conta com a produção dos irmãos Almodóvar (Pedro e Agustín): praticamente todo o meu círculo de amizades já viu esse filme, sendo ele uma unanimidade (no sentido de sua aprovação). Qual seria então a razão de escrever a respeito, já que esse círculo corresponde quase precisamente ao de leitores deste blog? Bom, uma das possíveis respostas a essa pergunta é a de que está aí um filme que merece ser revisto, coisa que eu mesmo fiz.
E por que ele merece isso? A questão é que seus seis episódios plasmam em nossos espíritos uma sensação que eu chamaria de incômoda. Não num sentido ruim, de asco, mas no sentido de uma certa vergonha, de uma profunda vergonha. E eu defendo aqui esse tipo de vergonha, profunda, a partir do pouco que aprendi, com o mestre Jorge Forbes, sobre os ensinamentos e a clínica de Jacques Lacan: é ela o ponto de destino de uma (psic)análise, aquele ao qual o analisando deve chegar ao final do seu tratamento. Cada um tem a sua, absolutamente singular, a recobrir a honra mais íntima de cada um. Reconhecer esse ponto e sustenta-lo perante o mundo, passando do “íntimo” para o “êxtimo”, é disso que se trata nesse tipo de clínica.
Os seis episódios nos apresentam situações, cotidianas, em que os personagens são levados, por um motivo ou outro, a limites que eles, por certo, evitariam, dando prosseguimento ao fluir corriqueiro de suas vidas regadas a civilização. Não vou resumir, aqui, cada uma dessas situações – quase todos já as conhecem e, para quem ainda não viu o filme, é bom manter a surpresa. Só o que me parece importante destacar é o fato de que o que brota desse trajeto rumo às cordas do ring, dessa súbita elevação da pressão atmosférica que joga os personagens para as margens de suas zonas habituais de fluxo, é esse elemento que ativa em nós, espectadores, ao mesmo tempo um reconhecimento e essa vergonha a que me refiro acima: a nossa animalidade.
Reparem como, em cada um dos episódios, essa animalidade pipoca – dando, inclusive, a justificação para o adjetivo presente no título do filme – e, em seguida, percebam como em cada uma dessas narrativas, há uma questão de honra envolvida. Na honra – ou melhor, naquele específico ponto de cada um que é recoberto pela mais íntima vergonha –, para Lacan, reside uma questão de vida ou morte: ao abrir mão desse ponto, quando ele aparece na vida de cada um, abre-se mão do sentido da própria vida. É questão de sobrevivência; daí que o vínculo com a animalidade seja perfeito, por mais paradoxal que isso possa soar (já que honra geralmente é associado a algo que se aprende, algo do terreno da cultura).
Sim, há honra envolvida (embaralhando as cartas para evitar estragar a novidade para os que ainda não viram o filme) no cidadão que resolve seu problema com o Detran bonaerense de forma peculiar, no noivo cuja noiva se enfurece em plena cerimônia de casamento, no músico rejeitado de forma unânime ao longo de toda a sua história de vida, no ricaço vitima de extorsão simultânea e em múltiplos flancos, na filha de pais vítimas de um carrasco e no motorista que vê seu patrimônio vandalizado e sua vida ameaçada por um outro motorista energúmeno. Todos se movem, a certa altura, tomados por essa coisa que talvez seja difícil de explicar a um computador. Até porque, até onde se sabe e se espera, esses (ainda) são incapazes de matar.
Para finalizar saindo um pouco do estritamente antropológico (entendido do ponto de vista mais filosófico do que acadêmico) e adentrando no político (relativo a rumos adotados pelas sociedades), pode ser que esse genial Relatos selvagens também provoque em alguns, como provocou em mim, uma reflexão adicional, que não se descola da primeira: até que ponto as nossas sociedades e seus governantes estão se dando conta de que nós, seres humanos, carregamos conosco esses pontos específicos aos quais se dá o nome de honra? E do quanto que, ao contrário dos psicanalistas que o buscam em seus pacientes a fim de que eles desabrochem enquanto sujeitos, é aconselhável que sociedades e respectivos governos façam o possível para que esse ponto dos indivíduos, como a polpa de um dente, não seja jamais, sequer, atacado, quanto menos atingido?
Em outros termos, eu diria que a selvageria de cada um é algo importante de se conhecer e preservar, ao passo que a da sociedade não (muito pelo contrário). Uma sociedade efetivamente civilizada será uma que reconheça e respeite a saudável selvageria dos indivíduos que a compõem e não uma que a atice. E tudo leva a crer que, quanto mais complexas as sociedades ficam – e, quem sabe, em função disso, quanto mais elas passam a depender de sistemas de informática – mais elas vão se aproximando, feito um dentista canhestro com a sua broca, de um lugar do qual não deveriam.
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