Dois Dias, uma Noite, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

A EUROPA ATUAL, NEM TÃO LONGE

Acho que vou chover sobre o molhado ao louvar o mais recente filme dos irmãos Dardenne, Dois dias, uma noite: dou uma olhadela no que o Google me retorna e vejo que a crítica é quase unânime em reconhecer os méritos do filme, dando ênfase, acertadamente, ao meu ver, à questão da solidariedade. Não tenho o hábito de ler críticas, nem antes nem depois de assistir a algum filme; e não fugirei a esse padrão neste caso em específico, pois só me dei o trabalho, nessa ligeira incursão, de procurar, sem êxito, por uma chamada que se destacasse das demais. Lembro de ter lido, também por alto, antes de ver o filme, algum crítico a dizer que este último filme desses dois belgas é quase iraniano na simplicidade de sua narrativa.

Começo por esse ponto em particular, do qual só me lembrei, durante a projeção, já nos créditos finais. Tudo bem: é algo a ser admitido como hipótese. Só que não, como se costuma hoje dizer. Primeiro, porque, se formos ver, todos os filmes desses dois são meio iranianos nisso de 1) terem a rua como principal cenário, sempre a ligar, feito os tentáculos de um polvo, as instituições de que uma sociedade é “feita” (a escola, a fábrica, o domicílio, a prisão, a repartição, o covil (O silêncio de Lorna)) e 2) quase beirarem o cinema mudo, onde os deslocamentos dos personagens, suas idas e vindas, contam como ação dramatúrgica importante – haja vista todas as sequências em moto (A criança), bicicletas (O garoto de bicicleta) e agora, dentro de um carro. Segundo, porque é bem difícil, no meu entender, que hoje possamos encontrar um cinema mais europeu do que o dos Dardenne.

Essa afirmação talvez passe por uma projeção muito particular minha: desde que vi A criança (2005), passei a considerar o cinema feito por esses dois como aquele que melhor traduziria o pensamento (ou as preocupações) de Foucault. A história, como todos se lembram, gira em torno de um jovem casal cujo componente masculino é um marginal sem teto. Ele engravida a sua namorada, uma garota, como ele, ainda muito jovem. Quando a criança nasce, na inconsequência que o move e sem que a recém-mãe saiba, agencia a venda do bebê. O filme termina com ele preso por esse abominável ato, mas recebendo a visita da companheira que, uma vez recuperada do susto, o perdoa. Somente então é que ele entende a dimensão do seu ato.

E o que isso tem a ver com Foucault? Bem, por um lado, creio ser um retrato da relação que existe entre uma liberdade e uma forma de existência atual do direito, um tema a que esse pensador dedicou anos de estudo, culminando na escrita do seminal Vigiar e punir. O direito possui, obviamente, uma história; para chegar a ser o que é, todo um trajeto foi percorrido. Examinar esse trajeto foi o que Foucault fez nesse livro publicado em 1975, mostrando que foi somente a certa altura da história europeia que a prisão se tornou o instrumento padrão para a punição, como parte de um arranjo maior, de uma “economia” em que não se podiam mais tolerar pequenos ilegalismos – os quais, em grande parte, eram o que “movia o mundo” até então, dando origem ao próprio capitalismo. O ato cometido pelo pai inconsequente do filme, se formos ver, seria algo perfeitamente legal num contexto como o da Roma Antiga (não é Foucault que nos chama a atenção para tal, mas sim uma série de historiadores), em que os filhos tinham status de propriedade perante os pais.

Obviamente, o pai da criança do filme nem sequer suspeitava desse passado. O seu aporte a esse drama, por mim entrevisto, entre o direito e a liberdade, recaia exclusivamente pelo lado dessa última, em cenas de raro lirismo que nos remetem, quem sabe, ao Acossado, de Godard. Trata-se de uma liberdade amparada pela ignorância, pela ingenuidade até, mas que estabelece, feito um profundo buraco que, no chão europeu, passou desapercebido, uma ponte com algo que já foi permitido, lembrando-nos que o direito, por mais compacto e infalível que seja, estará sempre imerso num líquido que pode ser chamado de liberdade.

O outro aspecto através do qual o cinema desses belgas remete a Foucault tem a ver com o foco dado ao exercício muito mais do que às ideias. Em Foucault, essa era a regra-mor de sua historiografia. Ele se embrenhava nos arquivos das instituições justamente à caça dos procedimentos mais banais, cotidianos, sendo daí que conseguia extrair regularidades que, somente numa última instância, se tornavam conceitos. Ora, os Dardenne parecem também proceder assim, com sua câmera que gruda nesses agentes mínimos, que beiram a marginalidade, para mostrar o quanto custa, em termos emocionais, o existir nos dias atuais num determinado lugar, que é a Bélgica, mas, por tabela, também a Europa, já que as regularidades que aparecem nos seus filmes possuem uma geografia mais vasta, prescindindo de contextos, digamos, político-partidários ou “nacionais”.

E eis que, tendo explicado o porquê de que a cada vez que vejo um filme desses dois eu me sinto atualizar no assunto Europa contemporânea, podemos, finalmente, chegar a esse soberbo Dois dias, uma noite. O filme trata de uma operária, casada e mãe de dois filhos, que se vê na absurda situação de, ao longo de um final de semana (os dois dias e a noite do título) ter que convencer seus 16 colegas de trabalho a reconsiderar a decisão que haviam tomado e que implicava na sua demissão. O que ocorre é que o dono da fábrica, de forma “democrática”, pôs em votação perante esse grupo, eles optarem seja por manter uma gratificação polpuda (mil euros) que haviam passado a receber, seja, abrindo mão dela, reintegrarem a colega que estava afastada há algum tempo devido a uma depressão da qual acabara de se curar. Os colegas, quando começa o filme, já haviam tomado a decisão pela gratificação, mas a descoberta de que o gerente havia influído nessa decisão, recorrendo à mentira de que se não fosse ela seria um deles a ser mandado “pra rua”, foi argumento suficiente para que o patrão decidisse por um novo escrutínio.

Eu tenho pra mim que o filme trata, sim – e belamente –, sobre solidariedade, mas, também, sobre isso que eu diria ser o seu reverso: o fascismo. Como podemos entender essa condição política? Partindo de que ela é uma, como nos diz Barthes (a respeito de outro assunto, a língua, mas, vá que a definição se mantem inalterada transposta a este e outros topoi), em que mais do que proibir, quem está no poder nos obriga a alguma coisa – ou seja, não deixa saída alguma restante –, infere-se de que passe necessariamente por uma relação de verticalidade, de poder. No caso específico do filme, por mais democrática que possa parecer, é a decisão do dono da empresa que impõe, pelos termos em que é desenhada, uma dinâmica fascista. A cada operário colega cabe um sim ou não dentro de um jogo que, de por si, já é excludente e, de quebra, de absoluta crueldade para com o conjunto. Alguns se dobram a esse ardil, outros não; e assim vai que ninguém é poupado: além de ter que vender sua mão-de-obra, fazer seu papel, é deixado a cada uma decisão da qual, no fundo, se paga para não ter que tomar. Um componente do fascismo não seria, então – e ao contrário do que tudo levaria a crer –, a pusilanimidade (ou preguiça, quando não a estrita vilania) dos governantes?

Interessante como Dois dias, uma noite me remeteu, já no campo pessoal, a uma situação vivida no meu trabalho nesse ano de 2014 que, afortunadamente, passou (o ano e, espero, a situação). Engendrou-se internamente, por vias que não vale a pena detalhar – e em nome de uma “modernização” – , um plano de reestruturação da carreira como um todo. Esse plano, que trazia em seu bojo a substituição de uma das categorias de nível superior por uma nova, mais “barata”, foi submetido à instância representativa de todos os servidores, o sindicato da categoria, cuja diretoria, ao invés de mediar, responsavelmente, os diversos interesses das sub-categorias, “democraticamente” entendeu que elas deveriam se entender por si mesmas. Uma vez que esse entendimento não ocorreu dentro do prazo definido para tal, seguiu-se pelo caminho da decisão numérica, dentro da qual os interesses particulares (e, em alguns casos, inconfessáveis) de algumas das sub-categorias se articularam para referendar a proposta excludente, sem a devida atenção aos impactos legais (a ver, num dos aspectos da proposta, com o que prevê a Constituição), econômicos (pois o barato acabava por sair caro no final) e de interesse do serviço público (tendo a ver com a troca de um perfil mais especialista por um outro mais generalista); e, muito menos, ao aspecto emocional, vinculado à quebra de algo maior e mais antigo (a solidariedade?), inscrito em tal exclusão.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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2 Responses to Dois Dias, uma Noite, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

  1. renato amaral disse:

    Sinto informar, mas vc. não entendeu o filme.

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