Performance na Praça Portugal (PPPP nº 01/2015), por José Eduardo Garcia de Moraes

ENCONTRO COM UM SHIVA LOCAL

O convite veio por email, como de hábito, com algumas fotos, sempre tiradas a raso, mostrando detalhes de objetos carregados de simbologia, como se a performance já estivesse acontecendo no momento em que a foto foi tirada. Neste caso, tratava-se de fotos de uma palmeira cuja folhagem se abre em leque, do tronco escarpelado de uma outra, da alça rococó de um bule de chá, dos desenhos numa louça portuguesa com motivos marítimos, a exemplo dos de um pôster carregado em kitsch e em cores de um crepúsculo talvez tahitiano. O título, “Circos reais de Madrid e harpas de gárgulas, show de cavalos árabes e cavalos sírios, cavalos marinhos e peixes de água doce, espadas de prata e espelhos de magia”, trazia consigo já uma bela carga de elementos a decifrar e a expectativa da variedade. E o lugar, bem, o mesmo de sempre, a casa/laboratório a que o filho pródigo sempre retorna, incrustada entre embaixadas de peso e anexos ministeriais: a maternal Praça Portugal.

José Eduardo Garcia de Moraes, genial artista performer brasiliense lançara a convocatória, dera o sinal para que o seu séquito (e quem mais viesse, dentre o público convidado) aparecesse lá, num domingo, no final da tarde (18 horas). E lá ele estava, o séquito, eu incluído, pontualmente, para prestigiar o mestre, a respeito de quem já escrevi em duas outras ocasiões neste blog.

E, passados alguns minutos da hora marcada, chega ele no seu Honda Fit, sobe na calçada (em pedra portuguesa e desenhos espirais) da Praça, dá umas duas ou três voltas e pára, deixando que sua acompanhante desça e que todos ouçamos o jazz que verte lá de dentro. O carro permanece ligado e José Eduardo retira do seu porta-malas o primeiro dos utensílios com que iria, ao longo da próxima hora e meia ou mais, se relacionar, perante o nosso olhar sempre um pouco assustado: uma bola de pilates, só que no formato de cápsula, como se fosse um grande e quicante comprimido de algum remédio a ser ingerido por um dinossauro.

Infinitos outros objetos se seguiram. Quase todos utensílios – inclusive os de vestir e calçar, que ele trocava a cada entrada sua de volta no Honda, que não parou nunca de propagar a música de Dave Brubeck e outros desse filão musical. Cada um desses utensílios, contudo, apesar da carga de prosaísmo (rastelo, rodo, buzina e banco de bicicleta, caixa de ferramentas, bandeira nacional, as roupas, bandejas, pratos e vasos, azeites, águas, cigarros, conchas de servir sopa, banheira de dar banho em cachorro, coador de alimentos), era notório na sua juventude, alguns até portando a etiqueta com o preço ou ainda fechados dentro da embalagem, outros reluzindo, invariáveis, uma marca de prestígio no mundo do consumo (como o próprio carro – do qual todos os outros iam saindo, feito coelhos de uma cartola – ou as vestes esportivas).

A dança que o artista levou a cabo ao longo de todo o extenso período da performance consistiu em fazer com que esses objetos todos interagissem com outros de uma natureza inteiramente diversa – mas igualmente luxuosa –, com contornos de singularidade e origem distante (tanto espacial quanto temporalmente): um narguilé em vidro, uma vara idem, uma gargantilha e dois anéis de pérola, uma corrente de ouro, xícaras de porcelana fina, bolas cromadas, um globo pontiagudo, um par de sapatos basco, um calendário de museu judeu no exterior, os diversos pares de óculos no nariz. Enfim, tudo o que foi prometido no título foi cumprido e aqueles que nos demos o trabalho de acompanhar essa dança até o final saímos de lá como se tivéssemos acompanhado uma criança a brincar com valores de diversas ordens, jogando-os no ar e lhes dando, em seguida, uma recepção acalorada e celebrativa, como a dizer “saravá” pra cada um, para, em seguida, perfilá-los dentro de uma geometria espacial e muito precisa, tal como fizeram Lúcio Costa e Niemeyer.

Nada de destruição, explosões, quebras, desfraldes, como já se viu no passado em performances suas. Apenas, digamos que José Eduardo levou tudo isso – essas coisas todas – para um passeio no qual elas experimentaram o risco, viram seu valor quase – mas somente quase – lhes escapulir. Algo se verteu sim, pra não fugir ao passado performático próximo: duas garrafas de azeite e de água (Perrier, é claro), mas, no final, se houve alguém que saiu mudado, transformado, este foi o próprio artista (que saiu, inclusive, molhado); e nós espectadores.

Não sei se esse deva ser o papel de um mero fotógrafo (tenho um acordo mais ou menos tácito de lhe enviar as fotos que faço, o que já fiz, tendo lhe remetido as melhores, para que ele mesmo divulgue), quanto mais amigo (não conversamos, ainda, a esta altura, a respeito), mas vou me permitir especular que essa última performance de Garcia de Moraes tem a ver com o assustador crescimento que a cidade em que ambos moramos experimenta. Ao longo dos últimos anos, levas e mais levas de pessoas, das mais diversas procedências, aqui tem aportado e se multiplicado e, em consequência, pistas se engarrafam, lojas pipocam, cinemas lotam, piscinas transbordam, parques fervilham, problemas se acumulam, atritos ocorrem, vidas mudam, nós envelhecemos. Como compatibilizar passado com futuro, essa mudança toda? Uma dança ao mesmo tempo destruidora e criadora como a do deus indiano – ou a de José Eduardo – talvez seja a resposta.

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About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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4 Responses to Performance na Praça Portugal (PPPP nº 01/2015), por José Eduardo Garcia de Moraes

  1. Graziela Murrieta Costa disse:

    Não pude assistir, mas tive a dimensão do trabalho do José Eduardo, sempre emocionante, criativo, sério e competente, pelo texto e pelas fotos. Parabéns ao performista e ao autor do post.

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