MATEMÁTICAS INCOMPATÍVEIS
Que leitura fazer, depois de ter assistido ontem, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (48ª edição), a Big Jato, da atitude de seu diretor, Cláudio Assis, que, três semanas antes, no Recife, protagonizou cena vexaminosa, por ocasião de um debate sobre o filme de sua colega Ana Muylaert, que acabava de lançar seu Que horas ela volta? – ele e o também cineasta Lírio Ferreira interromperam a fala da cineasta, que se iniciava, acabando com xingamentos a integrantes do elenco e equipe, numa atitude que ela atribuiu a despeito machista? Ambos os cineastas foram banidos, por um ano, em função desse comportamento, das promoções da Fundação Joaquim Nabuco, anfitriã do evento; e ontem, Assis, ao subir ao palco do Cine Brasília para falar do seu filme e apresentar a equipe, recebeu estrondosa vaia por parte do ávido e indócil público do festival.
Assis não é propriamente um estreante em termos de rebuliço cinematográfico. Em 2004, por ocasião da entrega de uma premiação em que seu Amarelo Manga concorria, ele disparou a chamar de imbecil ao diretor que então subia ao palco para receber o prêmio: Hector Babenco (por Carandiru). Relendo as manchetes da época, depreende-se que o seu clamor era por uma maior “honestidade” no cinema brasileiro.
Bem, Assis (assim como Ferreira) se desculpou perante Muylaert – que aceitou as desculpas. Alguma porção de sua atitude pode ser atribuída à bebida – também presente no episódio Babenco. O cinema brasileiro é uma família, chega-se à conclusão; e, como toda família, há lá lugar para os ferozes, os inconformados, os problemáticos. Em tempos de “autobiografias disfarçadas”, poderíamos ler Big Jato – um filme que fala, sobretudo, sobre família – sob essa clave.
Porém, talvez seja mais “honesto”, da parte de uma crítica, se distanciar um pouco desses bastidores e considerar o que pode haver de verdade nessa palavra enfurecida, a partir de uma análise desses dois filmes que acabam de ser lançados – o filme de Muylaert está em cartaz nos cinemas, com grande sucesso de bilheteria e o de Assis ainda demorará um pouco pra chegar ao circuito. E, como verão, algo a me auxiliar nessa tarefa decorre de um outro deslumbrante produto cultural a que tive acesso no mesmo dia de ontem: a exposição Passeio Selvagem, da artista plástica Raquel Nava, na Galeria Referência (205 Norte), que conta com curadoria e preci(o)so texto de apresentação de Graça Ramos.
Que horas ela volta? é um filme sobre um tipo de servidão que ainda existe em nossa sociedade no âmbito das famílias de classe média alta e daí pra cima: a do trabalho doméstico. Não vejo – inclusive como observador participante desse tipo de relação – pecado algum na existência desse mercado de trabalho, em que tarefas específicas recebem remuneração por parte daqueles que têm condições de terceirizá-las, face a um acúmulo, pessoal, de outras tarefas concorrentes. O problema, me parece, surge quando entra em cena uma herança cultural que avacalha a estrita ordem do contrato (que pressupõe uma igualdade de partes) e implanta a servidão (que pressupõe superioridade). E o filme de Muylaert possui o grande mérito de evidenciar, com as tintas poderosas da ficção, o absurdo, o ridículo até, daquilo que já havia sido mostrado por um documentário como Doméstica de Gabriel Mascaro e que vige nesse universo; o que é que impede, por exemplo, que o patrão levante a sua bunda da cadeira onde está sentado para pegar um Guaraná na geladeira, enquanto está claro que a empregada doméstica está ocupada com o restante da refeição a ser, em seguida, por ele consumida?
Assim, esse filme, ao contrário do que já declarou a própria cineasta ao tentar explicar o seu sucesso de público, não tem nada de plácido. Incomoda: faz com que olhemos para atitudes nossas do dia-a-dia – e, de quebra, reflitamos (em paralelo, já que esse certamente não foi o propósito inicial desse filme que começou a ser gestado bem antes) sobre o significado de uma iniciativa como a que temos assistido, ao longo dos últimos 13 anos de governo petista, de dar acesso às classes mais desprovidas economicamente a instrumentos que ocasionem uma percepção mais crítica do status quo. Há grande mérito nisso – como, de resto, em questões pontuais desse filme, tais como a atuação de ambas as protagonistas, em especial a que desempenha o papel de filha.
E Big Jato? Aonde reside seu mérito? Bem, eu diria que tudo se inicia (e termina) pela absoluta originalidade daquilo que é projetado diante de nós. Não se consegue, diante de um filme como esse, acessar aquilo que faz com que nós, críticos, tenhamos, vez por outra, algum destaque: correspondências, associações com outros filmes ou produtos culturais de ordens diversas. Já disse: é um filme sobre uma família, sobre uma família de um vilarejo do interior do Nordeste. Dois irmãos (ambos vividos sublimemente por Matheus Nachtergale) têm visões de mundo e trajetórias de vida bem diferentes, mas, não obstante, habitam a mesma localidade, passando à geração seguinte os impasses, de ordem filosófica, que perpassam seus respectivos espíritos.
Um, lida com a bosta da região, recolhendo, com o seu caminhão, aquilo que entope as fossas das casas. O outro é radialista e joga nas ondas sonoras que percorrem a (mesma) região, ilusões das mais variadas espécies, por saber talvez o quanto não se pode ficar só no que é resultante da “matemática” do mundo: as entranhas, entendidas não mais como aquelas de que sai a matéria que garante a sobrevivência do irmão, também têm a sua – e responde pelo nome de poesia. Reencenam, no limite, a diferença entre um Platão e um Aristóteles? Seguro que sim (eis que brota meu lado radialista).
Entretanto, há formas e formas em que isso pode ser feito. E a que Assis adota é uma, eu diria, que se caracteriza por dois elementos que se complementam à perfeição, quase como se gêmeos fossem: uma agilidade de linguagem falada e uma forma de filmar flutuante, ambas as quais nos atordoam. A linguagem falada é quase uma música, que requer um ator da capacidade de Nachtergale, mas também a de outros à sua volta (Marcélia Cartaxo está primorosa como esposa de um dos irmãos) – paradoxalmente, é somente com Jards Macalé, o músico, na vida real, a fazer o papel de uma espécie de menestrel local, que a coisa desanda um pouco. E a câmera que vagueia, que tem a liberdade de subir e descer, adentrar e recuar para em seguida girar, se deslocar: é como se lá estivesse o cineasta como mais um personagem a se expressar, inquieto.
O que é que isso tem a ver com a exposição de Raquel Nava? Bom, peguemos o que diz a sua curadora, no texto de apresentação:
“Conduzida com docilidade pelos materiais, Raquel não desenha o que deseja criar. Sobrepõe e extrai massas de tintas, inverte posições na hora da secagem, deixa bolhas virarem volumes, incorpora folhas de alumínio – luminosidade que se embrenha em todas as obras apresentadas – e acrescenta objetos, como a camurça preta instalada sobre a tinta no quadro-vitrine. Nessas superfícies intensas e vitais, paisagens inesperadas por darem a sensação de inacabado, ela devolve-nos também a antiga questão: a pintura é o que um faz ou o que um vê? – o que nos remete ao pensamento de Paul Klee: ‘A arte não representa o visível, a Arte se torna visível’.”
O cinema de Cláudio Assis é um pouco como o trabalho de Raquel Nava; em ambos, saltam aos olhos proezas de diversas ordens. E, a partir disso, não admira que o pernambucano, às vezes, incorra em estrepitosos passeios selvagens.