CARNAVAL NA NEVASCA
Vivemos um mundo pra lá de estranho: por um lado, passamos a ter o auxílio da rede mundial de informática, que amplia a nossa capacidade de resgatar coisas, de expressar outras e, por último, de adquirir – ou nos desfazer de – mais algumas; mas também, eis que surge em paralelo, feito uma sombra, o temor de que todo esse colossal suporte comunicacional venha a entrar, algum dia, em colapso.
Não sei até que ponto essa questão última procede. São alguns pensadores, com um certo renome, que trazem essa preocupação: haveria pânico na sequência, não teríamos condições de sobreviver, dada a nossa dependência. Vozes em sentido contrário alertam de que isso é uma grande bobagem, já que esse hipotético colapso jamais se dará. Quem sou eu para saber qual lado está com a razão.
Entretanto, a discussão não me parece de todo perda de tempo. Porque mesmo aqueles que dizem que a web nunca colapsará, parecem não questionar o fato de que se isso vier a acontecer, haverá, de fato, uma hecatombe. Em outros termos, é legítimo conjeturar sobre a nossa dependência em relação à rede; isso é algo que é cotidiano: está nos nossos lares e locais de trabalho, desde o momento em que acordamos até aquele em que nos deitamos para mais um noite de sono. Hoje, tem muita gente por aí fazendo retiros, específicos, do universo web.
Não é intenção minha esticar muito o assunto, mas essa discussão guarda alguma semelhança com uma outra, também recente: a proposta de que o Brasil deveria cancelar (ou ter cancelado, já que escrevo numa quarta-feira de cinzas) o Carnaval de 2016. Foi um escritor de que gosto, Alexandre Vidal Porto, quem propôs isso na Folha de São Paulo, face ao descalabro administrativo e financeiro em que nos encontramos (pra não falar no moral). Logo em seguida, um outro articulista saiu defendendo, é claro, o contrário: que há algo de sagrado nessa festa, em que todos temos o direito de extravasar sentimentos (bons ou ruins) e, assim, aplacar as nossas angústias. Evidente que esse segundo articulista tem razão; mas o primeiro não deixa de contar com a minha simpatia na medida em que, assim como fazem esses profetas da web, levanta o quanto é fundo o nosso buraco particular, dimensiona-o.
Tudo isso me veio à mente a partir de O regresso, último filme do diretor mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu, atualmente em cartaz. Filmado nos confins do Canadá, traz a história de um guia branco que está incumbido, nos primórdios da colonização do continente norte-americano, de conduzir caçadores de pele idem de volta à “civilização”, atravessando um território em disputa com povos indígenas, furiosos ao estarem sendo despojados de seus meios de subsistência e vida. Esse guia é vivido por Leonardo Di Caprio, e é alguém que foi absorvido, apesar da cor de sua pele, pela cultura indígena local. Tem um filho indígena. Sua esposa é indígena e foi morta nessa disputa territorial.
Saí do filme me perguntando qual foi a intenção de Iñárritu ao fazê-lo? Está claro que o filme é uma tour de force, quase à la Herzog: di Caprio, tal qual um Klaus Kinski (em Aguirre ou mesmo em Fitzcarraldo), enfrenta, além dos inimigos humanos, o inclemente meio ambiente, cruzando geleiras, caindo em caudalosas e congelantes corredeiras, brigando com ursos, protegendo-se de nevascas, driblando a fome, a sede, a doença. Terá esse esforço todo – não restando dúvida de que a equipe do filme sofreu quase tanto quanto o personagem ao seguir determinações ainda mais restritivas por parte do diretor, como a de só filmar com a luz natural – valido a pena?
Pergunta cuja resposta, no meu caso, se deu em dois tempos. A princípio, não, já que a impecável movimentação da câmera, a sonoplastia, os efeitos especiais, enfim, todos os recursos técnicos que nos fazem sentir “na pele” tudo o que esse guia sente, não são suficientes para esse giro, às vezes milimétrico, no parafuso da alma, que eu reputo a um bom filme ou a uma boa obra de arte. Contudo, eis que, no dia seguinte, no conforto do lar, com todos esses eletrodomésticos em volta, o carro na garagem, a internet ao alcance da mão, surge a pergunta: o que é que me move? O que é que nos move? É esse universo de tecnologia? Ou é esse misto de instinto e conexão espiritual com o restante da humanidade, algo que defendemos ao nos ligarmos, afetivamente, emocionalmente, politicamente, uns aos outros e ao qual pode ser dado o nome de honra? (O regresso é um filme sobre a honra, na medida em que a tudo, a toda a desgraça que se abate sobre o personagem de Di Caprio, sobressai a indagação sobre o que o leva a seguir adiante).
Volto a Vidal Porto e à sua proposta (hoje já vencida) de suspensão do Carnaval. Ao fazê-la, ele partiu da percepção que hoje se tem, lá fora, do Brasil. É, acredito, a perspetiva correta para uma proposta de tal ordem, já que passa por essa dimensão de conexão – a que estou dando o nome de honra –, a ser sustentada, com “o outro”. O Carnaval? Bem, esse já é quase um aplicativo ao qual nos rendemos periodicamente. Não teria sido mesmo o caso, para que pudéssemos voltar a nos mover, para provarmos a nós mesmos – e não só ao mundo – que seguimos vivos, de uma temporada de retiro?