EM POLÍTICA, NÃO HÁ ANALFABETOS
Há três anos foi lançando aqui no Brasil um livro do qual eu, confesso, fugi. Trata-se de A última lição de Michel Foucault – sobre o neoliberalismo, a teoria e a política, do sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie. O livro é de 2012 e o seu autor é um jovem de 35 anos (32 à época do seu lançamento). O motivo de eu ter fugido? Bem, acho que Foucault, quase todos sabem, me consumiu: dediquei-me a entendê-lo ao longo de quase uma década (fora as duas anteriores, quando o encontrei e o frequentei, mas ainda de forma, digamos, amadora). Tendo lançado meu livro, fruto da minha tese sobre o conceito de liberdade em sua obra, em 2010 – com retorno absolutamente zero –, em 2013 não queria mais confusão. E, óbvio, a sua relação com o neoliberalismo, tema desse A última lição…, isso era confusão da grossa.
Circunstâncias fizeram com que, agora, esse livro caísse em minhas mãos. Antes, porém, de adentrar seus (muitos) méritos, gostaria somente de comentar que, assim como eu, os demais especialistas em Foucault locais, pelo que observo em rápida googlada, também parecem ter se escamoteado do livro. Nada de surpreendente, já que essa ativa turma (vivem fazendo congressos e demais encontros, dos quais participei de alguns, mas não participo mais) não é lá de querer muito mexer em vespeiro.
O livro de Lagasnerie é simplesmente primoroso. Curto (162 páginas), não tem absolutamente nada de grosso: sua escrita é elegante, nada pedante, nada redundante, e, acima de tudo, nada confusa. Vai direto ao ponto, não foge dele e tira o máximo partido possível. Trata-se, também, seu autor, de um excelente exegeta de Foucault: pinça com precisão as citações, chama, dentre interlocutores contemporâneos ou não de Foucault, a quem tem que chamar, na hora exata, quando isso se faz necessário. Domina, com exatidão, os volumes de importância que cada tema abordado tem dentro da obra (não dá a mínima, por exemplo, à biopolítica). Em suma, anda junto com esse pensador no mesmo fio da navalha a que ele mesmo nos acostumou a vê-lo percorrer.
Adentrando o conteúdo do livro propriamente, a pergunta que cabe, aquela que faço a mim mesmo, é: como foi que não vi isso? Mas, o que é “isso”, exatamente? Bom, que Foucault, no curso dado no Collège de France em 1979, se deu o trabalho de estudar, a fundo, o liberalismo e o seu rebento, o neoliberalismo. Sim, é claro que esse curso, denominado O nascimento da biopolítica, consta nas leituras que fiz à época. Afinal de contas, é justo nesse momento onde se dá a reviravolta que o conduziu para fora dos limites da modernidade, onde havia transitado, exclusivamente, até então: o conceito de governamentalidade, a condução das condutas, é um que surge no curso do ano anterior e que se consolida nesse, para, em seguida, explodir de vez tais limites, a sua sede perene de conhecimento adentrando, na sequência, a antiguidade, o pensamento de Platão, a ética do cuidado de si e tudo o mais que me coube tratar.
O curso de 1979 lida, então, com tais aspectos mais atuais – esses dois liberalismos – dessa governamentalidade, cujas origens seriam muito, muito antigas. Digamos que ambas seriam uma demonstração a mais de algo cuja estrutura ele cuidava, então, de desvendar. As implicações dessa descoberta, essas eu sinto que não me furtei em entender e explicitar: que é possível recolocar, pôr em outros termos, o entendimento do jogo político, da política em si. A liberdade não é um estado que se define a partir de tais ou quais pressupostos, mas uma condição de permanente disputa entre governantes e governados. Ela é relacional e é um exercício diuturno.
De Lagasnerie, contudo, se indaga: o fato de Foucault ter dedicado tanto esforço ao entendimento dessas duas atualizações da governamentalidade, a essas duas tradições tão amplamente odiadas pelo mundo intelectual, isso não teria uma importância própria? Em outras palavras, essas propostas – e vamos direto ao ponto, ao neoliberalismo, a configuração mais radical dessas duas “utopias” – não conteriam elementos que o perturbaram suficientemente como para que ele lhes desse amplos, mas sempre serenos, ouvidos? De fato, foi isso que Foucault fez nesse curso.
Mas De Lagasnerie não se detém aí. Ele em seguida se indaga se não haveria no neoliberalismo elementos de crítica que estivessem em consonância, no fundo, com aqueles que o próprio Foucault vinha construindo, por meio da noção de governamentalidade. A governamentalidade, a milenar arte de conduzir condutas, diz Foucault, sempre se fez acompanhar pela crítica, por uma arte, emancipatória, de não ser governado. Todo aquele que, como eu, se der o trabalho de perseguir, junto com Foucault, o surgimento histórico da governamentalidade – são os cursos dos anos seguintes, com especial ênfase do de 1981, A hermenêutica do sujeito – perceberá que há algo essencial que torna possível a pastoralidade envolvida nesse jogo: a presença de uma transcendência, a crença de que o mundo possui uma ordem, uma visão superior – e, portanto, “verdadeira” – à do conjunto das visões.
E esse é o ponto: o neoliberalismo, ao entender que as leis que regem o mercado também deveriam ser as que regem o Estado é um entendimento negador de uma transcendência: justamente aquela obtida através do conceito de soberania. Toda soberania pressupõe, lembra-nos De Lagasnerie a partir de Foucault, uma transferência de poder dos indivíduos: o “sujeito de direito” que dela nasce “não é, ao contrário do que se acredita, um ser com consciência de seus direitos e que agiria de maneira a exercê-los e impô-los contra a razão de Estado. Ao contrário, trata-se de um ‘sujeito a ser sujeitado’.” (p. 123) E o marxismo, o contraponto mais evidente a esse entendimento que, nos anos 1970, já era uma realidade presente – e nos dias atuais, mais ainda –, não escaparia a essa obrigação de soberania/transcendência/verdade. Para dizer as coisas mais claramente: o neoliberalismo poderia, sim, ao contrário do que toda a esquerda em todo o mundo dá como certo, conter elementos emancipatórios.
A negação da transcendência equivale, sob certos aspectos, a admitir que não existem valores absolutos. Existem valores, meramente, que precisam achar (ou não) justificativas, espaços, lugares ao sol. A concorrência, o principal princípio a reger o mercado, fornece o modelo natural para tal: nele, tudo está sujeito a uma análise de custo/benefício. Não se trata tanto, nesse modelo, de uma defesa pura e simples de uma liberdade mas, como chama a atenção o próprio Foucault, da pluralidade: o neoliberalismo seria uma “meditação” a seu respeito. (E já que falamos aqui, estritamente, de política, observo que não estamos nada longe do pensamento de Maquiavel, cujo Príncipe – vá lá que soberano, “pero no mucho” –, quem sabe poderíamos, a partir dessa relação com os valores, listar como um neoliberal tão vigoroso quanto precoce.)
Algo bastante perturbador, não? Pois, para dar um fecho a tudo isso, ocorre-me de situar essa leitura no presente, quando estamos todos nos digladiando em torno do impeachment de Dilma Rousseff. Acabamos de ter uma aprovação de abertura do processo na Câmara dos Deputados onde muitos ficaram espantados com a genuína balbúrdia (olha ela aí) feita pelos parlamentares. Lá pelas tantas, alguns desses chamaram aos outros – que acabaram sendo majoritários – de um termo que me chama bastante a atenção: analfabeto político. Como se fosse possível que algum daqueles seres, a grande maioria dos quais se elegeu com dezenas de milhares de votos ou mais, não tivesse noção alguma do que lá estava fazendo (política, um exercício permanente perante outros seres, os eleitores, que exigem coisas). Como se a política tivesse uma cartilha única, transcendente (para aquele que não sabe ler, a habilidade em fazê-lo não deixa de ser uma transcendência), para além do entendimento, condicionantes e acertos que cada um porta consigo diariamente.
Foucault sempre se opôs à arrogância dos intelectuais. Igualmente, sempre questionou que a política, ou a liberdade, tivesse uma verdade única, eterna. O brilhante livro de De Lagasnerie e tudo o que acontece no Brasil de hoje me levam a pensar que, de fato, não está nada claro onde se encontram, hoje, aquelas forças verdadeiramente libertárias. O principal interessado no impeachment, o vice Michel Temer, é, de certo, alguém que partilha (para além dos votos recebidos em conjunto com a presidente), constitucionalista que é, do valor soberania. Evidente que em outra clave, mas, igualmente, soberania, transcendência, ordem. A questão, então, me parece estar em tentar perceber o entorno amplo de um e outro contendor e se dar conta de onde ocorre uma maior concentração de sujeitos dispostos a abrir mão de serem – em nome de uma ordem, qualquer que ela seja, presente, passada ou futura, “real” ou imaginária – agentes do seu próprio destino; e, consequentemente, escolher o outro lado. Hoje, parece-me que essa concentração, a ser evitada, se dá no conjunto que apoia a presidente.